domingo, outubro 24, 2004

A saga acaba por aqui - Figuras de Alhos Vedros

Fica provisoriamente por aqui a inclusão de excertos da história de Eláudio Tarouca, em especial da introdução que descreve Alhos Vedros dos anos 20 e 30 do século XX. Em outra ocasião poderemos continuar mas por economia de espaço ficamos agora por esta passagem.

Éh... Vila de Alhos Vedros... que saudades desses tempos que lá vão! Como ainda hoje recordo, e com bastante emoção, certos habitantes da pequena vila... entre eles o tio Ratinho e a sua mulher, a tia Josefa. O Zé Paradas, que diziam que era o galo das galinhas do tio Ratinho... e que, em paga lhe comia parte dos ovos... O Zé Viegas, que tinha uma mercearia, que apesar de pequena, tinha de tudo à venda e onde a limpeza andava brigada com a água e o sabão; o Malaguetas, onde se vendia bom vinho; o José Fulgência, mais conhecido por o «Papa Ratos» e que tinha um corvo ladrão, que roubava postas de bacalhau - quando o «fiel amigo» era comida de pobre- que o gorducho do Zé Viegas tinha de molho, dentro de um alguidar, para as vender fiadas às freguesas de última hora; o João Pingocho, agente de seguros; as famílias Cabrita, Manuel de Jesus, o Ponta da Unha, a tia Joana do Baralho, os Cochichos, o Palmelão, o Manuel Canas, o Zé Triste, o Paixão, o Virgílio Pereira, com a sua afamada orquestra, formada pelos seus filhos, a família Aquino... Como me lembro bem do dono do forno da cal, do chefe Grade, que era o chefe da estação de Caminhos de Ferro de Alhos Vedros, e os seus três filhos, o Daniel, o Zeca e o Eurico; o Lelito, o Marciano, o Zé Santos e o seu filho o Zé Eleja, que era o goleiro do Graça... a família Cantante, a senhora Ana, o marido e os filhos, o Mário, o José, a Amélia, que eram ali das Arroteias; o tio Pedro do correio, o senhor Ezequiel, da farmácia, o Henrique Racinha, que certa vez me quis surrar por eu andar de namorisco com uma cunhada sua, que era a Joana, irmã do António Amâncio, da Moita; a família Carlos Januário, o Pisco, o Chadiça e a sua complicada família; o Féria, fabricante de velas de sebo e fascista dos quatros costados... E como me lembro tão bem da família João Pinto, que tinha uma padaria ali no largo do jardim, mesmo em frente ao coreto... os seus três filhos, bastante meus amigos, o João, a Izaura e o mais novo. A Izaura, moça inteligente, activa, dinâmica, esperta, aquela bela e fresca moça que nem alface em manhã primaveril, bela e simpática rapari­ga, cujas carnes se adivinhavam ser de cantaria firme... mulher para homem nenhum botar defeito. À família Pinto, uma amizade sã e fraterna, o destino nos ligou e ainda hoje, sempre que a minha me­mória passa por Alhos Vedros, eu os recordo com aquela saudade pura e sincera com que a infância tempera as almas daqueles que só vivem para derramar sobre o seu semelhante sementes de bem querer, de paz e de amor... ou se calha a passar por lá... sempre os visita­mos com verdadeira alegria fraterna.
Também recordo o João capataz, as suas duas filhas, a Lídia e a Graciosa e o irmão, o Manuel, moço da minha criação. Recordo também o capataz geral e os seus filhos, recordo o Alfredo Simões, conhecido pelo nome de «fanista» e os seus dois irmãos, sem esque­cer o seu pai que, quando se embebedava, fazia rir toda a gente. O Cossa, o Carlos da Graça, o António Valentim, o Tolentino, a sim­pática Aldegundes, a Piedade e a sua irmã Rita... e tantas outras pessoas da vila, que me vêm à memória... mas que seria prolixo aqui enumerar.
Era, pois, num ambiente de perfeito atraso mental e de subdesenvolvimento, onde todos conheciam a vida de todos, inclusive até quase a íntima, e do que de tudo se faziam os mais torpes e mes­quinhos comentários, num maldizer colectivo... em que ninguém queria ficar a perder... que nos criávamos, que o Elaudo Tarouca também se desenvolvia e se fazia gente... gente como toda a gente.
E os anos se iam passando, alheios às misérias, aos desentendi­mentos e à falta de educação e de cultura e, principalmente, de ideias... os quais já começavam despontando... assim como o bro­tar de uma semente lançada à terra fecunda.
Aí pelo ano de 1929, eu, como trabalhava no Barreiro, nas ofici­nas Gerais dos Caminhos de Ferro do Sul e Sueste, fui morar para ali. A minha vida no Barreiro, pela influência recebida na con­vivência com os militantes do Sindicato Ferroviário, entre os quais cito os nomes de Miguel Correia, o Alfredo Carvalho, António José Piloto, Madeira, o Joaquim Figueiredo, o Adão, o Joaquim Venâncio, o Manuel dos Santos Cabanas, o Calapés, o Manuel José Hartley, o Artur José Pereira e outros, sofreu uma transformação radical, fazendo-me saltar do ambiente atrasado e mais interessado em bisbilhotar coisas da vida alheia, do que propriamente interes­sado na minha, para uma actividade constante, activa e cheia de novas emoções, que se recebiam da dinâmica vida Sindical, em que eu, de um dia para o outro, passara a conviver.

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