Mais uma vez, quando em Portugal algo funciona mal, geralmente porque não se cumprem as leis, o que se faz não é estudar e emendar o que de errado está no comportamento individual e institucional: o que se faz é alterar a Lei. Isto é, como é apanágio de uma mentalidade escolástica, o que nos importa é a forma e nunca o conteúdo.
Quando a Europa debate uma Directiva Quadro de Protecção do Solo, debate duro e complicado, em Portugal baralham-se as leis, democratizando as decisões arbitrárias como é o caso da RAN e da REN, como é o caso da classificação do solo, passando para as Autarquias o poder de decisão de não cumprir os objectivos da legislação. A capacidade de interpretação do “Relevante Interesse Geral” que abre as portas a todo o género de decisões arbitrárias, o facto das comissões e “Entidades” serem maioritariamente representantes das Obras Públicas, da Economia, dos responsáveis centrais da administração local, dos municípios e dos ministérios interessados, Agricultura e Ambiente.
Quando temos um Governo que se diz Socialista, mas que ficará conhecido na história por decisões gravíssimas na área do Ambiente e da Agricultura, tal como ficaram:
- A continuação do projecto do Alqueva com a provável degradação dos solos da água do Alentejo sem benefícios agrícolas sustentáveis.
- A construção da Barragem do Sabor.
- O Programa Nacional de Barragens com elevado Potencial Hidroeléctrico, com um fortíssimo impacto a longo prazo na conservação dos peixes dos nossos rios (põe em causa o compromisso europeu para salvaguarda da biodiversidade Countdown 2010, http://www.countdown2010.net), destruído zonas de enorme interesse ecológico, e com impactos mal avaliados no incremento da erosão costeira, na emissão de metano, e na riqueza piscícola da costa portuguesa.
- A alteração do local do novo Aeroporto de Lisboa, com a destruição da nossa melhor zona de produção de hortícolas etc., a destruição de sobreiros, a impermeabilização daqueles solos.
- A falta de estratégia para o espaço rural, apostando nas grandes obras e na intensificação agrícola, causadora de enormes danos ambientais quando a Europa aposta na Agricultura Racional e amiga do Ambiente, na Agricultura de precisão, na agricultura com protecção integrada, biológica e na agricultura extensiva.
O que mais choca neste Governo PS é apostar na solução imediata e simples dos problemas da crise – emprego vindo das grandes obras, crescimento económico a todo o custo, aumento do emprego (deveria dizer menor desemprego) mesmo que saiba que a médio longo prazo iremos pagar demasiado caro este afã.
O que também choca neste Governo é falar a linguagem da Conservação da Diversidade Biológica, quando sabe sobejamente que as políticas que adoptou só irão agravar o problema. É o doublespeak orwelliano no seu melhor: proclamar a intenção de fazer algo, e realizar justamente o seu oposto.
O que choca é escutar este executivo falar em energias renováveis e cumprimento do protocolo de Quioto, quando em verdade continua a apostar no transporte rodoviário em vez do ferroviário, enquanto continua a apostar na construção de um novo e colossal aeroporto quando se sabe que o número de viagens está e irá continuar a diminuir visto que a internalização dos custos das emissões e o preço do petróleo subirá a prazo.
Por fim o que mais me choca, enquanto cidadão ambientalista e socialista, é o Governo do meu partido continuar a falar de ordenamento do território quando ao manipular a péssima legislação urbanística que temos, sinistra na suas omissões sobre a economia imobiliária, mais não faz do que distribuir mais-valias urbanísticas por quem entende. Vide os PIN, Projectos de Interesse Nacional.
Quando se debate a questão da corrupção em geral e a modalidade mais importante deste fenómeno entre nós não é debatida — a corrupção urbanística —; quando o nosso partido recebe, ou parece ter recebido apoio financeiro de promotores imobiliários; quando as medidas de política continuam em período de crise a fomentar a construção de mais habitação quando muita da que já existe permanece devoluta (e já chega para albergar mais de 2 milhões de portugueses) só nos resta citar uma autora clássica de estudos sobre corrupção:
“A existência de apropriações de rendas [diferenciais urbanísticas] afecta consideravelmente a percepção pública do mercado. Se a distribuição de rendimentos passar a ser vista como uma lotaria na qual os ricos ganhadores são apropriadores de rendas com bons contactos [na Administração Pública], enquanto os pobres e perdedores são todos aqueles que não se apropriam de rendas [por não terem bons contactos], começa a reinar um clima de suspeita generalizada” (A. Kruger 1975, The Political Economy of the Rent-Seeking Society).
A suspeita, a incongruência, justificada ou injustificada das decisões dos nossos e dos outros políticos portugueses estão a destruir a democracia. Reparem que à mulher de César não importa apenas ser séria, importa também que o pareça. O descrédito daqueles que deveriam zelar pelo interesse comum, pela sustentabilidade levará provavelmente a tentações totalitárias e ao descrédito da Democracia.
Repare-se que segundo a Lei de Bases do Ambiente (aprovada por unanimidade da Assembleia da República) “O Ordenamento é um instrumento da política do Ambiente” (artº 27º da Lei 11/87 de 7 de Abril), “é o processo integrado da organização do espaço biofísico tendo como objectivo o uso e a transformação do território, de acordo com as suas capacidades e vocações, e a permanência dos valores de equilíbrio biológico e de estabilidade geológica, numa perspectiva de aumento da sua capacidade de suporte de vida” (artº 5º da mesma Lei).
Ao dedicar determinados espaços para determinados fins (ecossistemas), para conseguir determinados objectivos, o Ordenamento corresponde à tradução espacial das políticas económicas, sociais e ambientais. Considerando que essa decisão (gestão do território) é ética, isto é, que obedece ao corpo de princípios ou valores que governam a sociedade e que distinguem o bem do mal, considerando que as decisões da Sociedade visam a satisfação das necessidades dessa mesma Sociedade e condenam a apropriação privada de bens e de património que são propriedades de todos, o ordenamento do território deve ter como Objectivo a distribuição equitativa da riqueza, portanto, a distribuição das externalidades, quer positivas quer negativas, visando a satisfação das necessidades do homem, agora e no futuro (alínea e) do artº 5º da Lei 48/98 de 11 de Agosto.
Porque hão de alguns arrecadar as mais-valias resultantes de uma valorização da valor do terreno em mais de 100 000% e outros perderem os Serviços ambientais e arrecadarem os riscos (cheias, erosão costeira, desertificação, perda de biodiversidade, destruição da paisagem, etc.).
Então é inaceitável que os Socialistas não encabecem o debate desta questão central do nosso sistema democrático, que se eliminada resolveria muito provavelmente os grandes problemas e a tentação das decisões imediatistas e insustentáveis a que temos assistido.
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