quinta-feira, julho 16, 2009

Pedro Bingue: A bolha imobiliária: duas faces da mesma (falsa) moeda

Aqui.

Durante o ameno Verão de 2007 rebentou a gigantesca bolha imobiliária que, dizia-se, vinha crescendo nos países anglo-saxónicos desde 2001. Todos nos recordamos como num dia daquele Agosto os índices da bolsa de Nova Iorque caíram em picado, devido ao pânico dos investidores frente à combinação infeliz de uma crescente morosidade hipotecária, um mercado imobiliário sobrevalorizado, e enormes excedentes de oferta de habitações novas. Faliram primeiro as imobiliárias, logo em seguida as grandes seguradoras financeiras que garantiam os empréstimos às primeiras, um pouco depois vários bancos credores de imobiliárias e seguradoras, e por fim deu-se o colapso dos sectores que dependem do crédito, a começar pela indústria automóvel. A economia norte-americana contraiu-se a taxas só comparáveis às da Grande Depressão dos anos 1930 — e o mundo foi arrastado no torvelinho desta desgraça.

Contemplando a crise mundial, os governantes portugueses apressaram-se a dizer que se tratava de um problema “exógeno”, que Portugal “não estava exposto às hipotecas subprime” americanas nem tinha sofrido de “especulação imobiliária”. A nossa crise, disseram, tinha causas distintas e só se agravou por força desta crise alheia.
Sucede que, na verdade, Portugal sofreu uma bolha imobiliária mais grave que os Estados Unidos: enquanto a americana começou a crescer em 2001, a portuguesa vinha inchando-se desde 1986. As diferenças quantitativas estão à vista: naquele país existem cerca de 60 casas vazias ou “secundárias” por cada 1000 habitantes; no nosso, esse número ultrapassa as 140; a habitação média estado-unidense custa cerca de 2,5 orçamentos anuais brutos da família, ao passo que a sua equivalente portuguesa custa 9,5 vezes o respectivo orçamento. Acresce ainda o facto de a maioria das hipotecas contraídas em Portugal serem exemplos acabados de subprime: as suas prestações consomem mais de 40% do orçamento mensal da família, cobrem mais de 80% do valor do imóvel, são amortizadas a três ou mais décadas, e estão indexadas a taxas de juro variável. Por fim, o preço absoluto dos fogos residenciais portugueses raia o incongruente: em Lisboa ultrapassa os 2500 €/m2, quando em Berlim ronda os 1500 €/m2. A rematar o panorama imobiliário português encontram-se os assombrosos números de construções erguidas desde 1986: mais de 50% do parque residencial hoje existente tem menos de duas décadas, e presume-se que entre este se encontre mais de um milhão de fogos desabitados.

Portugal vive agora as consequências do estoiro de uma bolha imobiliária velha de duas décadas, que proporcionou a uma minoria de indivíduos encaixar ganhos especulativos às custas de hipotecas financiadas pela banca estrangeira, do endividamento perpétuo de uma geração inteira para pagar casas facturadas muito acima do preço justo, do destroçar da paisagem urbana, do abandono da indústria, e do sacrifício da economia produtiva no altar da construção civil medíocre e do urbanismo caótico.

As causas
Na génese de todas as bolhas especulativas — sejam imobiliárias, filatélicas, bolsistas ou outras — encontra-se uma aliança entre crédito fácil, de um lado, e ganância por rendimentos obtidos sem esforço, do outro. Do lado dos ganhadores encontram-se os profissionais da especulação, bons conhecedores dos ciclos de mercado, bem colocados junto do mundo financeiro e político, e capazes de controlar a informação que é disponibilizada ao público — para criar a ilusão de que a “valorização dos activos” resulta de um “novo paradigma económico”, do “milagre do mercado livre”. Do lado dos perdedores estão os “investidores” amadores e não raras vezes — quando o bem especulado é essencial à vida (cereais, petróleo, habitação) — a restante população.

Os mercados mais vulneráveis a bolhas são aqueles em que a oferta dos activos é inelástica e escassa, isto é, a quantidade de produtos disponíveis para venda a cada intervalo de tempo é fixa e em número reduzido. Obras de arte e selos raros são bons exemplos: quando dispara o interesse colectivo por adquiri-los, o preço dispara em simultâneo por ser impossível aumentar a oferta para saciar toda a procura. Se a oferta for inelástica apenas no curto prazo e a respectiva procura for vital para os consumidores como é o caso dos cerais (cujo aumento do volume de produção demora vários meses), o processo também se pode dar com virulência: os grandes especuladores conseguem açambarcar as colheitas de um ano para provocar escassez artificial e consequentemente um aumento também artificial dos preços, encaixando mais-valias enormes, como se verificou durante 2008. Se a oferta for inelástica no médio prazo e, além disso, os activos forem imperecíveis (como é o caso do imobiliário), e não houver uma intensa intervenção estatal a preveni-lo, resulta que a especulação, o oligopólio cartelizado e o desespero das populações por obter esses bens geram um verdadeiro anti-mercado que nada tem de livre, justo ou eficiente, fixando-se os preços a níveis extorsionários.

Os anti-mercados caracterizam-se, entre outros factores, pelo desequilíbrio entre oferta e preço: o aumento da quantidade de bens oferecidos provoca um paradoxal aumento dos preços. É um facto historicamente reiterado que o mercado imobiliário, se não estiver bem regulado e intervencionado pelo Estado, produz anti-mercados em lugar de mercados, oligopólios em lugar de concorrência perfeita, açambarcamento de stocks em lugar do seu escoamento fluido, e sobretudo preços de equilíbrio artificialmente colocados muito acima do custo marginal de produção dos bens.

Se não houver uma tributação do património imobiliário que iniba o subaproveitamento dos imóveis, e uma ampla oferta de imobiliário público para arrendamento (tanto habitações como solos rústicos para cultivo), resulta fatalmente que uma grande parte da terra e dos edifícios são mantidos desocupados pelos proprietários que nem os utilizam, nem os alienam por preço justo a terceiros que desejem aproveitá-los. Um anti-mercado cujos preços são controlados unicamente pelos ofertantes, que os colocam muito acima do custo de produção e os alçam até ao limiar máximo da capacidade de pagamento dos demandantes, deixando-lhes apenas os rendimentos mínimos para subsistir.

O panorama do parque residencial português acusa as patologias do anti-mercado imobiliário. Mesmo havendo uma superabundância de habitações novas e vazias, os portugueses sofrem dificuldades escusadas para adquiri-las: se tivessem de pagar pela sua casa apenas o seu custo de construção (incluindo este o lucro do construtor, mas excluindo a mais-valia do especulador) não despenderiam mais de 15% do seu orçamento familiar anual em habitação; mas dado que o preço é na prática marcado unilateralmente pelos ofertantes muito acima daquele custo, são forçados — pois não têm outra alternativa — a despender em torno dos 45% ou mais dos seus rendimentos. Interpretando politicamente esta situação, pode dizer-se que 1/3 do proventos familiares dos portugueses são capturados todos os anos por um verdadeiro “imposto revolucionário” encapotado sob a forma de hipoteca, cujos beneficiários são uma minoria de oligopolistas imobiliários — sobretudo loteadores de terrenos.

O mercado imobiliário e a política de solos
Em épocas de bolha imobiliária como a que vivemos, a expansão da malha urbana cria oportunidades extraordinárias para se conquistar fortunas através da manipulação política e administrativa do mercado de solos. Um terreno agrícola multiplica por dezenas ou centenas o seu valor de mercado quando recebe um alvará de loteamento; obter um alvará — uma manobra que nada tem de empreendedora em si mesma — torna-se um caminho seguro para o enriquecimento.

Os números falam por si. Num mercado imobiliário tutelado por uma política de solos progressiva, um terreno agrícola não apresenta preços superiores ao valor à perpetuidade das rendas agrícolas (1), mesmo que se situe nas cercanias de grandes cidades. Se em Portugal vigorasse uma política assim (como vigorou, diga-se de passagem, até 1965), nenhum dos nossos terrenos rústicos perirurbanos deveria estar cotado a preços superiores a 20.000 € por hectare; isto porque acima destes preços as rendas da actividade agrícola são incapazes de amortizar a compra do solo. Porém, se esse mesmo terreno se situar num local sob procura imobiliária e lhe for concedido alvará de loteamento, o seu preço atingirá valores muito mais elevados, tanto maiores quando mais acentuados os índices urbanísticos concedidos: nos subúrbios de Setúbal, Lisboa, Coimbra ou Porto, um hectare inculto e sem infra-estruturas pode ser facilmente revendido a preços entre os 500.000 € e os 10.000.000 € por hectare, consoante licenciado para a construção de moradias ou de apartamentos.

Contraste-se este nosso regime comercial com o dos Países Baixos; o mercado imobiliário holandês é dos que mais exemplarmente executa a retenção pública de mais-valias urbanísticas. Mesmo que se encontrem contíguos aos perímetros urbanos, os solos agrícolas holandeses são transaccionados a preço estritamente agrícola, posto que qualquer comprador privado sabe de antemão que futuros acréscimos de valor do solo, produzidos por via de loteamentos, reverterão para o erário público. Além de reter as mais-valias urbanísticas, o Estado Holandês oferece também para arrendamento público mais de 30% do parque habitacional do país — fórmula que além de facilitar a mobilidade laboral e assegurar residência a preço justo para toda a população, dificulta sobremaneira o crescimento de bolhas imobiliárias.

A legislação urbanística portuguesa de hoje em dia, em contrapartida, é uma verdadeira obra-prima da corrupção sistemática do aparelho do Estado e das Autarquias. Pode dizer-se que um especulador não teria escrito melhores leis para si mesmo. Desde que foi publicado o Decreto-Lei n.º46/673, fazendo da privatização de loteamentos e mais-valias urbanísticas o estribo da política nacional de solos (2), uma minoria de políticos e funcionários públicos que controlam a emissão de alvarás urbanísticos e a revisão de planos de ordenamento detêm o poder quase soberano de redistribuir a riqueza nacional em favor de quem lhes aprouver, sem necessidade de prestarem quaisquer contas perante os restantes cidadãos. A perspectiva de conquistar essas “fortunas trazidas pelo vento” (3) a que se chama mais-valias urbanísticas (4) graças ao controlo de certos cargos políticos e administrativos atrai para a vida partidária não poucos oportunistas ansiosos por sobraçar pastas e pelouros ligados ao urbanismo. Quem paga este jogo? Quem ganha com ele?

Quando uma família compra um apartamento novo nos subúrbios de Lisboa pagando 150.000 €, sendo o respectivo custo de construção inferior a 50.000 € incluídos os lucros do construtor, importa perguntar: quem embolsou os restantes 100.000 €, que mais não são do que mais-valias urbanísticas? Extrapolando para todo o edifício: quando vinte famílias pagam 3.000.000 € por um conjunto de apartamentos que mais não custou a construir do que 1.000.000 €, quem embolsou dois milhões de euros em mais-valias urbanísticas criadas por uma decisão urbanística pública? Extrapolando para um hectare com, suponhamos, quatro desses edifícios: quem foi o afortunado que recebeu oito milhões por nenhum outro motivo senão o ser agraciado com um alvará?

Consequências económicas
Por força da bolha imobiliária dos últimos vinte anos, as poucas dezenas de milhar de indivíduos que controlam esse sector, mancomunados com uma poderosa rede de governantes, legisladores, autarcas e funcionários públicos, locupletaram-se açambarcando centenas de milhares de fogos habitacionais e revendendo-os mais tarde a preços especulativos produzidos sob o beneplácito de uma legislação oportunista, e ainda graças à manipulação política de alvarás urbanísticos e de planos de ordenamento do território. Num processo comparável ao da maré ultra-liberal que assolou a Europa entre a Revolução Francesa e as Revoltas de 1848, criou-se uma nova aristocracia rentista, tornada imensamente rica não por via do empreendedorismo produtivo, mas por meio do controlo oligopolista e político desse bem essencial que é a habitação. Foi um jogo de anti-mercado, travestido de “progresso”, que deu resultados de soma zero: o montante total das fortunas dos novos aristocratas imobiliários igualou a dívida gigantesca, em hipotecas quase perpétuas, de toda a geração que necessitou de adquirir casa neste período infeliz.

Quando uma sociedade inteira começa a percepcionar a acumulação de riqueza não como uma recompensa do trabalho ou do empreendedorismo, mas como o resultado de favores político-administrativos que transferem dinheiros que deveriam ser públicos para os bolsos de uns poucos privados, estabelece-se uma degradação da moral pública que asfixia o mérito e a produtividade.

Em certos países produtores de petróleo, o único caminho disponível para o enriquecimento pessoal é a apropriação privada de rendas petrolíferas; quem controla a emissão de alvarás de concessão de poços, controla quase absolutamente as fortunas e o destino do país. De Portugal poderia traçar-se uma descrição semelhante: nas últimas décadas, o caminho mais eficaz para o enriquecimento pessoal tem sido, além da especulação com fogos habitacionais, a apropriação privada de rendas (mais-valias) urbanísticas: por isso, quem controla a emissão de alvarás de loteamento controla as fortunas e o destino do país — com efeito, reina sobre os portugueses quem gozar o poder de alterar ou suspender Planos Directores Municipais (PDM), de desafectar terrenos à Reserva Ecológica Nacional (REN) ou à Reserva Agrícola Nacional (RAN), ou de autorizar urbanizações de “Potencial Interesse Nacional” (PIN).

Quem controla esta produção e distribuição de mais-valias urbanísticas tem nas mãos o verdadeiro poder político e económico de Portugal, e goza privilegiadamente das suas riquezas. Tudo o resto — incluindo os rendimentos da indústria, da agricultura e dos serviços, enfim, da genuína produção — são bagatelas comparadas com o valor dos alvarás urbanísticos nos anos de bolha imobiliária. Não surpreende que a maioria dos escândalos de corrupção recentes surgidos no nosso país tenham por pano de fundo alterações a planos de ordenamento do território, sempre envolvendo novas permissões para lotear ou urbanizar.

Perspectivas do futuro económico
Não há almoços grátis, reza a teoria económica: o consumo só é possível porque alguém produziu anteriormente o objecto consumido, e esse produtor tarde ou cedo reclamará contrapartidas equivalentes — a menos que se deixe espoliar.
Também não há bolhas imobiliárias grátis: a portuguesa, essa, foi paga com créditos hipotecários. Nem as famílias nem os bancos portugueses possuíam aforros suficientes para cobrir os preços pedidos por loteadores e especuladores: para obter esses montantes foi necessário pedir créditos à habitação, financiados a 30 ou 40 anos junto da banca centro-europeia, facto que agravou sobremaneira a dívida privada portuguesa ao estrangeiro.

Com efeito, desde 1996 os bancos portugueses deixaram de estar limitados a emprestar somente o dinheiro depositado por aforradores nos cofres bancários portugueses: passaram a poder emprestar dinheiro que estes últimos obtinham em crédito junto de instituições financeiras de outras nações europeias. Ao concederem empréstimos com dinheiros por seu turno emprestado do exterior, injectaram biliões de euros na economia portuguesa. Dinheiro emprestado, é certo; mas enquanto circulou em abundância dentro dos mercados nacionais e não começou a ser devolvido à origem, trouxe euforia aos portugueses, os quais se julgaram por isso mais ricos — quando na verdade a riqueza recém-adquirida não era sua, era emprestada. O ano de 1998 talvez tenha marcado o sentimento mais paroxístico desta mania colectiva: o dinheiro fácil permitiu todos os entusiasmos, todas as megalomanias de consumo — e todas as manipulações dos preços imobiliários.

Os portugueses que adquiriram casa própria entre 1986 e 2006, mas sobretudo os que o fizeram na última década, foram forçados a pagar a grande festa de loteadores trazendo do futuro, sob a forma de crédito à habitação, os rendimentos do seu futuro até cerca de 2025. A crise que agora se iniciou e nos acompanhará por uma geração mais não é do que a ressaca sofrida por todos dos ganhos excessivos encaixados por uns poucos, com o beneplácito da classe política que sobraçou as pastas do urbanismo.

Soluções políticas
As soluções para os problemas económicos e sociais são, necessariamente, políticas. O credo neoliberal, com a sua fé na auto-regulação e intrínseca justiça nos mecanismos de mercado, não passa disso — numa crença em abstracções que falham estrepitosamente na descrição da realidade. A crise actual comprova-nos a falência desta ideologia: décadas de “liberalização” deixaram-nos um legado de endividamento geracional e de desigualdade económica grave. Entretanto, a bolha financeiro-imobiliária geradora desta crise permitiu a ascensão de uma nova aristocracia neoliberal, cuja riqueza resultou de golpes oportunistas idênticos aos da (então nova) aristocracia liberal do século XIX: a apropriação das rendas fundiárias — os liberais por via da apropriação dos latifúndios eclesiásticos, os ditos neoliberais de hoje por via da apropriação privada das mais-valias urbanísticas que deveriam ter revertido para o Estado.

Tanto o Estado como os cidadãos acumulam hoje dívidas de montantes raramente vistos na História. Os contribuintes são chamados a nacionalizar bancos falidos pela morosidade imobiliária; cidadãos carregam hipotecas perpétuas muito superiores ao custo real dos imóveis que compraram. Todo este oceano de dívida destina-se, em última análise, a um só fim: pagar a crédito a fortuna desta nova aristocracia — um pequeno grupo social que além de ter ascendido por via da captura política de rendas fundiárias, passou a reter centenas de milhar de imóveis vazios nas nossas cidades e outras tantas centenas de milhar de terrenos devolutos e expectantes em redor delas.

Talvez a solução mais justa para este problema seja redistribuir a riqueza fundiária por via fiscal, bem como consagrar a retenção pública das mais-valias urbanísticas.
A via fiscal passa pela aproximação ao conceito de Land Value Tax. Os valores tributáveis repartem-se em três grupos: consumo, rendimento e património imobiliário. Hoje em dia a carga fiscal incide maioritariamente sobre o primeiro (IVA, imposto sobre produtos petrolíferos, etc.), e o segundo (IRS, IRC), sendo o terceiro (o IMI) muito reduzido face aos anteriores. Ora, se o Estado reduzir muito substancialmente os impostos sobre o rendimento e o consumo, em simultâneo aumentando significativamente os impostos sobre o imobiliário, conseguirá de modo cirúrgico transferir para os fautores e beneficiários da actual crise a despesa de combatê-la, ao mesmo tempo em que alivia a carga fiscal total das empresas.

A retenção pública das mais-valias urbanísticas deveria ser feita interditando-se o loteamento particular de terrenos privados, como é de regra nos países mais desenvolvidos e, diga-se de passagem, se praticou também em Portugal até 1965. Deveria competir unicamente à administração pública adquirir terrenos rústicos a preço rústico, fraccioná-los em lotes edificáveis segundo bons projectos urbanísticos, e oferecê-los em hasta pública. Assim se conseguiria não só criar condições para desenhar novos e bem concebidos bairros sem o sufoco de pressões especulativas, como também se obteria uma concorrência perfeita entre construtores civis ao quebrar-se o controlo dos loteadores privados sob a qualidade da construção.

A concretização política destas reformas, aparentemente simples de um ponto de vista técnico, não será fácil. Nas autarquias, nos órgãos de soberania, no tecido empresarial do país, existem inúmeros protagonistas cuja ascensão ao poder tanto político como económico resultou das oportunidades de enriquecimento a expensas de alvarás urbanísticos. Rebentada a bolha imobiliária, a fonte das suas riquezas secou; mas o seu poder político mantém-se. Se, durante as décadas de despautério imobiliário não souberam fazer melhor do que promover o caos urbanístico aprovando loteamentos em terrenos de aliados seus, ao mesmo tempo que fechavam os olhos ao endividamento nacional que sustentava as fortunas que criaram a dedo, dificilmente serão eles a encontrar solução para o problema em que a sua ganância nos lançou.
Quem sacrificou Portugal à corrupção urbanística não pode salvar o país da miséria que ela trouxe.

1 Assumindo que um terreno produz anualmente uma renda a, num contexto de taxas de juro de valor t, o seu valor à perpetuidade equivale à valorização financeira de uma série perpétua de prestações anuais, dado pela fórmula V0= a/t. Por exemplo, uma seara que produza uma renda anual de 300 €, num contexto de taxas de juro a 6%, valerá em termos financeiros V0= 300/0,06= 5000 €. Se for vendida a preços superiores a este valor, será porque a especulação sobre câmbios futuros colocou o terreno sob a mira de revalorizações futuras.

2 A Política de Solos instituída pelo Decreto-Lei n.º 794/76 de 24 de Novembro sempre foi, para todos os efeitos práticos, letra morta. O Código de Expropriações (DL 168/99), o Regime Jurídico de Loteamentos Urbanos (DL 448/91) e o Regime Jurídico dos Instrumentos de Gestão Territorial (DL 380/99) configuram, na sua substância, a real política de solos do nosso país e limitam-se a seguir o espírito do diploma de 1965.


3 Tradução livre da expressão windfall gains — ganhos económicos não resultantes de actividades económicas produtivas da parte do beneficiário. Habitualmente resultam de manipulações políticas dos mercados económicos, de modo a introduzirem uma “renda de escassez”, um acréscimo artificial entre o custo de produção e o preço de venda de um dado produto. Às tentativas de obter windfall gains a literatura económica anglo-saxónica dá o nome formal de rent-seeking activities, e o nome informal de bribery.


4 O facto de tradicionalmente se dar o nome de mais-valias aos ganhos por valorização administrativa de terrenos rústicos tem levado a um grave equívoco nos exercícios tributários: o de confundir as mais-valias urbanísticas (MVU, de natureza improdutiva e política), para efeitos fiscais, com mais-valias bolsistas, financeiras e comerciais (de natureza produtiva). Ora, em termos de economia politica as MVU definem-se como rendas fundiárias diferenciais d

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