António da Costa volta a abordar a questão das tradições moiteiras, investindo de novo contra aqueles que defendem que o futuro do concelho está em fugir à frente de touros e novilhos pelas ruas da terreola.
Estes últimos dias é só cultura nos nossos posts.
A tradição já não é o que era !
Tendo começado um texto anterior sobre este tema com uma referência a Hobsbawm que se destacou, entre muitas outras áreas, pela sua análise do fenómeno nacionalista, começaria este com outro autor, politólogo, que também estudou o nacionalismo e as estratégias usadas pelos movimentos nacionalistas para se apropriarem daquilo que gostam de apresentar como as tradições imemoriais das comunidades humanas cujos direitos afirmam defender.
Ernest Gellner afirma, entre outras passagens deliciosas, que «os fragmentos e remendos culturais usados pelo nacionalismo são muitas vezes invenções históricas arbitrárias. Qualquer velho fragmento ou remendo teria servido na mesma. (...) O nacionalismo não é o que parece e, acima de tudo, não é o que parece para si mesmo. As culturas que reclama defender e reviver são muitas vezes invenções suas, ou são modificadas para além de qualquer reconhecimento» (Nations and Nationalism, 1983, p. 56).
Ocorreu-me esta passagem que tanto pode ser aplicada aos nacionalismos como a muitos regionalismos e localismos, a propósito de alguns argumentos usados recentemente por um defensor das tradições tauromáquicas da Moita que, inadvertida ou voluntariamente, acabou por confessar que as mesmas não passam de uma estratégia para que a Moita não seja apenas um dormitório na orla de Lisboa (Vitor P. Mendes, Jornal da Moita de 3 de Junho de 2004, p. 6), mesmo se as afirma tricentenárias (o que me parece de difícil prova) ou obra de «sucessivas gerações que persistiram num rumo cultural próprio, fortemente identitário».
O autor em causa baralha-se e tropeça um pouco na própria argumentação, pois embora reclame a ancestralidade da identidade cultural da Moita, acaba por declarar que a mesma acaba por não passar de um recurso actual para que os moiteiros afirmem a sua auto-estima (o que nunca me pareceu um problema de que padecessem após várias décadas de maravilhada observação da impedância e incontinência em particular das suas elites tauromáquicas e pseudo-intelectuais), à semelhança de Paços de Ferreira, Gondomar ou a Marinha Grande (apresentadas como capitais nacionais de diversas actividades económicas, o que não é bem o mesmo que fazer largadas em Maio e Setembro). Depois, embora se utilizem critérios de ancestralidade para defender as pretensões identitárias da Moita, consideram-se anacrónicas as pretensões alhosvedrenses de recuperação de um poder usurpado. Em primeiro lugar, essas pretensões têm raízes bem mais ancestrais que os touros na Moita e, em segundo, se tomarmos como critério de unidade administrativa «o querer viver com dignidade e criar os filhos em paz e numa terra de oportunidades» teremos de criar uma superestrutura transnacional para albergar todos o que o desejam, tornando-se obsoletos os concelhos. Para além de que qualificar a Moita e o seu concelho como «terra de oportunidades» suplanta em humor subliminar tudo o que Manuel Pedro escreveu no seu artigo sobre o Imposto Taurino.
Por outro lado, criticando também de forma sinuosa o Manuel Pedro, V.P.M. parece acreditar que quem critica as questões de touros na Moita é porque não conhece a coisa em si. Nada de mais errado, pelo menos na minha perspectiva, pois só conhecendo algo é que podemos saber se gostamos ou não. As expressões taurinas que usa como exemplos do que os pretensos leigos não seriam capazes de perceber são uma forma de pegar de cernelha o assunto, não sei se me faço entender.
Reagindo ainda de forma muito implícita a pretensões como as dos animadores do blog Alhos Vedros ao Poder (parece que uma reacção explícita não ficaria muito bem), V.P.M. considera anacrónicas as posições que criticam o poder actual da Moita e passa a questionar o que é Alhos Vedros neste momento. Ora bem, V.P.M. coloca aqui o dedo na ferida mas de forma distorcida porque a questão certa seria «No que tornaram Alhos Vedros?», pois Alhos Vedros não chegou ao que é por obra do acaso, mas sim por muita acção (moiteira) e inacção (alhosvedrense, por certo) que procurou apagar (a primeira) ou deixou desbaratar (a segunda) um passado e uma memória que mereciam melhor sorte.
A Moita é o que é (se é rica, não sei, pois sempre me pareceu querer ser mais do que é) graças a um poder que centralizou e não partilhou durante mais de um século, deixando definhar quem lhe poderia fazer frente em termos históricos e patrimoniais, mesmo se beneficiando da apatia de quem devia ter defendido os seus direitos mas preferiu calar-se ou aliar-se ao poder do momento. Pois, porque não podemos comparar a história de Alhos Vedros e o seu património com as identidades culturais (legítimas ou inventadas é questão em aberto) da Moita. Não nos esqueçamos que a autonomização da Moita em relação a Alhos Vedros (amputando o seu concelho) resultou da atribuição de mercês a um nobre poderoso e não de qualquer movimentação das suas populações. As discussões que marcaram o final do século XVII na zona são elucidativas sobre a perturbação que a divisão provocou, quebrando laços de solidariedade e cooperação económica que existiam e só se recompuseram de forma desiquilibrada em favor da Moita, graças às pressões do seu novo senhor.
Só para dar um exemplo do abandono a que está votado o património histórico da região, lembre-se que nos arquivos da CMM existem cerca de duas dezenas de livros de vereações de Alhos Vedros que permitem acompanhar a história do seu concelho desde, pelo menos, 1624 (se os não destruiram como muita da documentação da Misericórdia de Alhos Vedros, uma das primeiras dos país, deitada para o lixo no meio de restos de seringas usadas, algodão ensanguentado e outros detritos do hospital) até 1839 (o último livro que vai até 1855 estava pelo Barreiro há uns anos atrás). Infelizmente, ninguém se preocupou em transcrevê-los e publicá-los. Provavelmente porque os recursos económicos para publicações só existem se forem para revistas sobre tauromaquia.
Continuando com alguns exemplos de atitudes que, mais do que um atentado ao património são um ataque à mera inteligência humana, relembremos a ideia peregrina, de há uma década atrás, mais coisa menos coisa, de desmontar o pelourinho quinhentista de Alhos Vedros, com o pretexto que esta vila já não era sede de concelho, para o levar para a Moita. Será que o pelourinho do Estado Novo não chega ? Ou não transmitirá a dignidade histórica suficiente ?
Passando para outra área, da gestão do espaço urbano, lamentavelmente conduzida durante anos por um alhosvedrense seduzido pelo poder (político e económico, apesar da pretensa ortodoxia), quem foi que ao arrepio do então nóvel PDM aceitou construir enormes barracões por Alhos Vedros, em nome de um desenvolvimento económico de que hoje restam apenas as carcaças ? Porventura na Moita foram aceites tais desmandos ? Quem concebeu para Alhos Vedros um plano urbanístico que apenas obedece a interesses privados, dando autorização à construção de blocos de apartamentos ao sabor do momento e sem qualquer tipo de qualidade arquitectónica ?
Qual foi o poder que nunca deu um passo institucional para recuperar, em termos de preservação do património de uma forma capaz, o eixo histórico de Alhos Vedros, desde a Igreja até à cadeia medieval, passando pelo Largo do Pelourinho e Misericórdia, assim como o largo do chamado Cais Velho ? Alguém acha que é um parque com charcos de água estagnada e uns arbustos a tapar o cadáver da Gefa que resolvem o assunto ?
E quem foi que deixou toda a zona ribeirinha, de salinas, moinhos de maré e sapal, de Alhos Vedros à disposição de quem tem toda a qualidade de monos (pneus, frigoríficos, etc) para se livrar ?
Realmente, só resta rir de tudo isto, pois é o que nos resta depois de 30 anos de poder autárquico democrático, incapaz de inverter as décadas anteriores de poder salazarista.
Há mais de 15 anos, ao falar com António Nabais, um investigador de património local da Margem Sul, ele dizia-me que a sorte de Alhos Vedros era ter ficado esquecida no meio dos desmandos que se viam no urbanismo da zona. O problema é que, para além de esquecida, Alhos Vedros foi asfixiada e, quando se lembraram, foi para começar a destruir, ou ajudar a cair, o que restava.
Caiu o cinema ? Ceda-se às pressões imobiliárias e façam-se apartamentos e lojas dos 300 !
A velha cadeia está em ruínas ? O que querem, são apenas pedras velhas !
Os barracões das velhas indústrias da cortiça já caíram ? Coragem porque ainda há os barracões das indústrias têxteis para saquear e cair !
É verdade que o mais triste de tudo foi que boa parte dos alhosvedrenses com alguma iniciativa, quando não decidiram fazer carreira nas nomenklaturas partidárias do establishment, convertendo-se à inanidade das práticas correntes, foram-se embora da freguesia, entre a tristeza e a necessidade. Agora, não sei se é tarde mas, pelo menos, alguém que tenha a vontade e o ânimo de escrever o que muitos pensa(ra)m mas não tiveram a coragem de afirmar publicamente, por apatia, conveniência, sei lá. E não venham com a história que só nos conhecem o nome e etc, porque quando mostrámos a cara e inquirimos os responsáveis, não nos responderam ou nos trataram como irresponsáveis opositores ao desenvolvimento local (leia-se, da Moita).
Se tenho lágrimas ? Tenho ! Por isso é que preciso de rir, porque, caso contrário, é difícil suportar tanta estupidez junta. Aliás, há quem diga que o humor, como sinal de inteligência reflexiva e auto-crítica, é o que nos distingue entre os animais. Há quem o tenha, há quem o não consiga ter.
António da Costa
(editor cultural do blog www.alhosvedrosaopoder.blogspot.com)
Junho de 2004
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