domingo, agosto 02, 2009

Maria José Morgado - Sistema de licenciamento favorece associação à corrupção

Revista OPS, nº 4:


«Sistema de licenciamento favorece associação à corrupção»
Maria José Morgado
Maria José Morgado é procuradora-geral adjunta do Tribunal da Relação de Lisboa desde 2006. É licenciada em Direito pela Universidade de Lisboa, tendo ingressado na magistratura do Ministério Público em 1979. Ligada à Polícia Judiciária, assumiu o comando da Direcção Central de Investigação da Corrupção e Criminalidade Económica e Financeira (2000-02). Foi a coordenadora da investigação de casos polémicos como o Apito Dourado ou a alegada corrupção na Câmara Municipal de Lisboa e é uma voz publicamente activa contra a corrupção em Portugal.

Reformar o sistema de planeamento, combatendo o “emaranhado de legislação” que dá poder aos técnicos, prevenir a corrupção e o abuso de poder sobretudo nas áreas críticas em que tais situações são susceptíveis de aparecer e introduzir no Código Penal português o crime contra o ordenamento do território, foram algumas das pistas apontadas por Maria José Morgado na comunicação intitulada “Urbanismo ilegal – uma justiça impossível”, apresentada na Universidade Lusófona no passado dia 30 de Maio, em Lisboa. Nesta comunicação, a oradora denunciou o que considerou serem os seis desastres do urbanismo ilegal.

O sistema de ordenamento português – enquadramento geral
A Procuradora começou por recordar o enquadramento geral do sistema de ordenamento do território em Portugal, a começar pela lei de bases do ordenamento do território (Lei 48/98, de 11 de Agosto), que define o quadro da política de ordenamento do território bem como os instrumentos de gestão territorial que a concretizam. Maria José Morgado esclareceu que a lei regula as relações entre os diversos níveis da Administração Pública e desta com as populações e com os representantes dos diferentes interesses económicos e sociais e sintetizou os instrumentos dos três níveis do nosso sistema de ordenamento do território, com as correspondentes “siglas”, muitas vezes desconhecidas dos cidadãos.

Assim, no âmbito nacional, a lei de bases prevê o Programa Nacional da Política do Ordenamento do Território (PNPOT), da responsabilidade do Governo e que reveste a forma de Lei da Assembleia da República.

No âmbito regional, os instrumentos são os Planos Regionais de Ordenamento do Território (PROT), da responsabilidade das Comissões de Coordenação Regional e que revestem a forma de Resolução do Conselho de Ministros.

Finalmente, no âmbito municipal, podem existir planos intermunicipais, que envolvem municípios associados ou associações de município e são aprovados pelas respectivas assembleias municipais, e planos municipais, que envolvem apenas um município e são aprovados, por proposta da Câmara Municipal, pela Assembleia Municipal.

Maria José Morgado salientou ainda que os instrumentos de gestão territorial podem ser de natureza predominantemente estratégica ou ter carácter regulamentar. No primeiro caso, temos instrumentos de desenvolvimento territorial, que traduzem as grandes opções com relevância para a organização do território, como os PROT (por exemplo: o PROT da Área Metropolitana de Lisboa) ou os PIOT – planos integrados de ordenamento do território (por exemplo: o PIOT do Alto Douro Vinhateiro). No segundo caso, temos instrumentos de planeamento territorial, de natureza regulamentar, que estabelecem o regime do uso do solo, como os Planos Directores Municipais (PDM), os Planos de Urbanização (PU) e os Planos de Pormenor (PP).

Para além destes instrumentos, podem ainda existir instrumentos de gestão territorial de política sectorial ou de natureza especial, explicou Maria José Morgado. Os instrumentos de política sectorial programam ou concretizam as políticas de desenvolvimento económico e social (na área dos Transportes, Comunicações, Educação, etc.). Os instrumentos de natureza especial salvaguardam princípios fundamentais do Programa Nacional de Política do Ordenamento do Território (por exemplo: os Planos de Ordenamento de Áreas Protegidas, da Orla Costeira, de Albufeiras, etc.)

Quanto aos Instrumentos de Gestão Municipal, a Procuradora destacou as figuras do plano director municipal (PDM), do plano de urbanização (PU) e do plano de pormenor (PP). O PDM, baseado na estratégia de desenvolvimento municipal, estabelece a estrutura espacial, a classificação básica do solo – rural ou urbano – e os parâmetros de ocupação, considera a implantação dos equipamentos sociais e desenvolve a qualificação dos solos, estabelecendo o respectivo uso e edificabilidade. O PU desenvolve em especial a qualificação do solo urbano. O PP define com detalhe o uso e a edificabilidade de qualquer área delimitada do território municipal.

Passando em seguida à tramitação processual da edificação, Maria José Morgado recordou os principais passos:
  • PIP – Pedido de informação prévia;
  • POC – processo de operação de construção;
  • Licenciamento;
  • Fiscalização.

O PIP destina-se a efectuar um pedido generalista ou específico. No primeiro caso, apenas questiona a viabilidade de construção de um edifício, por exemplo de habitação, em determinado local; no segundo caso, questiona a mesma viabilidade mas incorporando já o projecto de arquitectura. Em ambas as situações, frisou a Procuradora, uma informação prévia favorável vincula as entidades competentes na decisão sobre um eventual pedido de licenciamento.

O processo de operação de construção envolve a entrega dos projectos de arquitectura e de especialidades. O licenciamento implica a aprovação do projecto de arquitectura e a emissão da licença/autorização para a operação urbanística, titulada por alvará. A fiscalização realiza-se através de inspecções e vistorias.



Áreas críticas no processo de ordenamento do território

Segundo Maria José Morgado, as principais áreas críticas no processo de ordenamento do território situam-se na legislação, no planeamento municipal e nos processos de edificação e fiscalização.

No âmbito do planeamento municipal, é na revisão dos PDM’s, na aprovação dos Planos de Urbanização (PU) e nos Planos de Pormenor (PP) que ocorrem situações que a Procuradora identificou como tráfico de influências (art. 335º do Código Penal), abuso de poder (art. 382º, CP), participação económica em negócio (art. 377º, CP) e corrupção (art.s 372º e 374º, CP ou 16º e 18º, Lei 34/87, de 16 de Julho).” Muitas vezes estas situações servem também o financiamento ilegal dos partidos, lembrou Maria José Morgado.

A utilização ilegal destes instrumentos de planeamento territorial surge, segundo a Procuradora, porque é nesta sede que se define a política dos solos quanto à sua classificação – rural ou urbano – e qualificação – uso e edificabilidade. Estas actividades delituosas envolvem os decisores camarários/políticos e os grandes promotores imobiliários.

A aprovação das operações urbanísticas resulta da aplicação de um verdadeiro emaranhado de legislação, afirmou a oradora. O “modus operandi” mais utilizado, alertou, caracteriza-se pela “indução de que a operação urbanística está conforme a legislação, quando efectivamente tal não corresponde à realidade – pelo meio «algo» está desconforme com as disposições normativas aplicáveis”. Verifica-se igualmente, segundo Maria José Morgado, que o emaranhado de legislação confere «poder» e garante aos técnicos responsáveis uma posição de “domínio” sobre os munícipes, construtores e promotores. Estas actividades delituosas, disse a Procuradora, envolvem sobretudo os técnicos e os “pequenos” promotores imobiliários, muito embora também os decisores camarários/políticos e os grandes promotores imobiliários surjam ligados a estas situações, quando se trata de projectos de grande envergadura.

Os ilícitos mais comuns identificados por Maria José Morgado neste tipo de actuação são: “abuso de poder (art. 382º, CP), participação económica em negócio (art. 377º, CP), prevaricação (art.11º, Lei 34/87 de 16 de Julho) e corrupção (art.s 372º e 374º, CP ou art.s 16º e 18º, Lei 34/87, de 16 de Julho)”.

Na área da fiscalização ocorre sobretudo, afirmou a oradora, a denominada “corruptela”: “paga-se ao fiscal para a obra não parar, não ser aplicada a coima ou não serem denunciadas desconformidades”. Muitas vezes “torna-se mais rentável para o prevaricador dar «qualquer coisita» ao fiscal”, disse ainda, “do que ver a obra embargada e ser alvo de uma coima”. Os intervenientes são sobretudo, segundo a Procuradora, “os fiscais e os técnicos responsáveis pelo acompanhamento dos projectos de arquitectura e especialidade”.

Os ilícitos mais comuns neste tipo de actuação são, de acordo com a comunicação de Maria José Morgado, “o abuso de poder (art. 382º, CP), a denegação de justiça (art. 369º, CP), a prevaricação (art. 369º, CP ou art. 11º, Lei 34/87, de 16 de Julho) e a corrupção (art.s 372º e 374º, CP ou art.s 16º e 18º, Lei 34/87, de 16 de Julho).”

Os seis desastres do urbanismo ilegal

A destruição da natureza e as alterações climáticas, os desastres naturais (como as inundações), as alterações do ecossistema, a degradação do ambiente e o consequente mal-estar das populações, o desperdício dos recursos naturais e o crescimento urbano desregulado são, segundo Maria José Morgado, os seis principais desastres do “urbanismo ilegal”, que ilustrou com algumas imagens. Para o combater, temos de actuar ao nível do sistema de planeamento, ao nível da prevenção e ao nível da protecção penal.

O sistema de licenciamento é complexo e ineficiente, afirmou a oradora, “favorecendo a tendência para a associação à concessão de favores/corrupção.” Maria José Morgado recordou que o licenciamento de um imóvel pode chegar a exigir 3.000 requisitos. O regime de licenciamento urbano é um “complicómetro”, disse ainda, concluindo ser necessário reformular a legislação. Uma boa proposta, sugeriu, seria um Código Técnico de urbanização e edificação.

Ao nível da prevenção, a Procuradora salientou a lei 54/2008, de 4 de Setembro, que criou o Conselho de Prevenção da Corrupção (CPC), entidade administrativa independente a funcionar junto do Tribunal de Contas. Esta lei considera entre as “actividades de risco agravado” as decisões de ordenamento e gestão territorial (art. 7º, nº2).

É preciso, sustentou Maria José Morgado, garantir o acesso de todos os cidadãos à informação sobre os PDM’s e a transparência na gestão territorial. A IGAOT (Inspecção Geral do Ambiente e do Ordenamento do Território), frisou ainda, tem de desempenhar o seu papel relativamente às decisões administrativas nestas matérias.

O crime contra o ordenamento do território
O Código Penal Espanhol introduziu recentemente a figura do crime contra o ordenamento do território no sistema penal daquele país. Maria José Morgado destacou o art. 318º do CPE, que penaliza a construção não autorizada, responsabilizando promotores, construtores e técnicos directores. A construção não autorizada em solo não urbanizável é mais agravada. Além da responsabilidade dos intervenientes, a obra deve ser demolida.

A figura do crime contra o ordenamento do território, que não existe em Portugal, implica “a responsabilidade penal pela aprovação de projectos de edificação contrários às normas urbanísticas vigentes, envolvendo nessa responsabilidade a concessão de licenças camarárias e os próprios órgãos municipais colegiais que nelas intervieram”. Se o crime ocorrer em espaço natural protegido há agravamento da pena. A introdução deste crime no sistema penal português aumentaria, segundo a Procuradora, o nível de protecção penal em Portugal.

7 comentários:

Anónimo disse...

Pela quantidade de comentários neste post, nota-se que, quem lê o AVP é pessoal que trabalha, e que, não tendo a profissão de V. Exa, trabalha mais de 6 horas por semana.
De qualquer modo, continuem o bom trabalho que têm feito até hoje.
É verdade, a malta já tinha saudade do vosso super ego, parabéns pelos quase 6 anos, é que, se não o escrevessem, ninguém dava por isso.
Quem sabe se, um dia o seu blog não passa a livro.

Anónimo disse...

pelo estilo de escrita...até parece uma figura ilustre cá do burgo...acertei?

Anónimo disse...

Mas porque é que o PS não se juntou ao PSD e votou a sua proposta de recusar candidaturas para cargos de poder a candidatos envolvidos em crimes de corrupção, mesmo que sejam apenas suspeitos? será que não tem quem os substitua nas listas? O PS parecer ter um receio terrível de uma "cabala" mas qualquer outro partido poderá ser alvo dela. Uma coisa é certa: todos nós temos a sensação de que este país se afunda a pouco e pouco na corrupção e que nada se faz: O dinheiro dos cidadãos esfuma-se de locais acima de qualquer suspeita e sob vigilância estatal; executivos com altos cargos apresentam oficialmente rendimentos insignificantes enquanto ostentam níveis de vida impossíveis de ter com esses rendimentos; a riqueza parece assim esfumar-se de uns lados e brotar do nada em outros. As provas de corrupção são impossíveis de obter ou inacessíveis face ao código civil altamente garantista que temos o que faz com que a qualquer criminoso seja muito mais difícil cair sob alçada da lei, mas para ajudar ao "ramalhete" as penas são cada vez mais simbólicas...e com tendência a serem reduzidas ainda mais com as alterações aprovadas ao código penal. NÃO SE ADMIREM SE O ELEITORADO COMEÇAR A ABANDONAR OS PARTIDOS COMPROMETIDOS COM ESTA SITUAÇÃO, NOMEADAMENTE O "ps". HÁ QUE RETROCEDER E JÁ!

Zé da Burra o Alentejano

T-Rex disse...

Sim, a culpa é do PS, aliás o Isaltino é PS e o Valentim idem... É a vossa auto-proclamada "política de verdade" de 6 meses sem democracia que vai impedir O ELEITORADO DE COMEÇAR A ABANDONAR OS PARTIDOS!

AV disse...

#1,
Já pensou ir mudar a água aos tremoços?

Anónimo disse...

Os xuxixalistas locais querem pôr-se à margem da MÁFIA e fazer ignorar os seus autarcas PRESOS.
Pudera!
Em tempo de eleições esquecem os sócios e afirmam desconhecer as sociedades, de malfeitores.
Dos enriquecimentos ilicitos em autarquias (ex-Braga/M.Machado...) passando pela pedófilia até aos Freeport(s), há de tudo.
Parecem ratos a abandonar, aquí é provisório, o navio mal visto.

Com os respeitosos cumprimentos,
O vosso melhor amigo.

Anónimo disse...

PORTUGAL vs CORRUPÇÃO

Este país afunda-se na corrupção sem que haja uma resposta à situação porque as leis deste país dificultam a obtenção de provas e a sua aceitação em julgamento. Os réus com dinheiro para pagar a bons advogados conseguem, através de expedientes vários, paralisar o andamento dos processos e recorrer numerosas vezes das sentenças condenatórias. A única pena que os atinge é terem que gastar um pouco da fortuna acumulada sabe-se lá como para pagar a esses advogados, mas conseguem assim manter-se em liberdade durante anos, lustros, décadas, por vezes até que os casos se esfumem na memória dos tempos. Vejamos a diferença entre este país e um outros, os EUA: O caso Madoff que foi investigado, julgado e teve condenação pesada em cerca de seis meses. Já não deverá sair da cadeia para o resto da vida.

Todos nós sentimos a necessidade das leis serem alteradas:
1º) Simplificar as leis e dotar a investigação e os tribunais de meios técnicos e humanos necessários para que os casos sejam resolvidos em tempo útil;
2º) Aceitar todas as provas obtidas tenham sido conseguidas com ou sem autorização de um juiz (é perigoso acusar alguém de um crime que não cometeu e evitá-lo terá que ser um cuidado a ter por qualquer jornalista). Provas obtidas por ordem de um juiz chegam a ser postas em causa apenas porque conseguem considerar o juiz como sendo “não imparcial”;
3º) Terminar com certos tipos de segredo que só servem para dificultar a investigação e permitir que muitos criminosos continuem com as suas práticas criminosas, dado que a sua identidade não é divulgada (quem não deve não teme);
4º) Reduzir o nº de recursos possíveis e dar-lhes prioridade;
5º) Aumentar sistematicamente as penas ao réus caso o recurso confirme o crime, dado que é usado frequentemente apenas para adiar o cumprimento da pena;
6º) Aumentar em geral as penas efectivas para os crimes graves e de corrupção. Ultimamente têm sido reduzidas e com o novo código penal vão-nas reduzir ainda mais;
7º) Suspender o exercício de cargos políticos aos condenados mesmo que tenham recursos pendentes sem quaisquer juízos relativamente aos casos em Tribunal.

A culpa de tudo isto é nossa (dos eleitores portugueses) porque não somos capazes de desatar o "nó górdeo" que nos prende ao PS e PSD, dois super partidos ligados ao poder há demasiado tempo que já não têm capacidade de regeneração e de resolver o problema. Ambos reconhecem que é preciso fazer alguma coisa mas a hora nunca é oportuna. São noticiados frequentemente casos que envolvem ora um ora outro partido, chegam a Tribunal mas por este ou aquele motivo nunca se chega a uma condenação exemplar, e isto há já dezenas de anos e não podemos esperar que melhore.

Zé da Burra o Alentejano