sábado, novembro 20, 2004

Os lugares da memória

«Ser membro de qualquer comunidade humana significa adoptar uma posição com respeito ao próprio (ao seu) passado, mesmo que esta seja de recusa. O passado é, portanto, uma dimensão permanente da consciência humana, um componente obrigatório das instituições, valores e demais elementos constitutivos da sociedade humana.»
(E. Hobsbawm, Sobre la historia, Barcelona, Ed. Critica, 2002, p. 23)


A indiferença das reacções dos responsáveis da CMM, e seus apoiantes, perante o progressivo apagamento da memória do passado municipal de Alhos Vedros e pela degradação, seguida de destruição, dos parcos vestígios patrimoniais que dele nos restam é algo que só posso qualificar como chocante ou, talvez mais correctamente, como sinal de uma profunda ignorância e insensibilidade pelo papel simbólico de determinados espaços e tradições na manutenção de uma identidade específica por parte das comunidades humanas.
Ou, pior do que isso, como uma estratégia consciente de, por omissão em primeiro lugar e por acção depois, apagamento dos elementos essenciais da memória de uma identidade muito própria e específica que Alhos Vedros já teve no passado e que, nos últimos 100-150 anos o poder da Moita fez os possíveis por obliterar.
As fases do processo de apagamento das memórias e da identidade de uma comunidade são várias. Para além dos efeitos naturais provocados pelo tempo que, ao escoar-se, leva sempre ao esfiapar dos vestígios do passado, temos a intervenção bem mais perniciosa, pela acção ou inacção dos homens.
A tentativa de destruição por vias violentas, embora mais rápida, leva normalmente a reacções de resistência igualmente violentas, mesmo que nem sempre com sucesso. São muitos os exemplos deste tipo de genocídio cultural ao longo da História. Por regra só damos atenção a este tipo de acções, por estarem associados a consequências mais trágicas, para não dizer espectaculares, e tanto mais atenção damos quanto maior é o grupo humano afectado.
Mais insidiosas, mesmo se a mais longo prazo e sem o recurso a meios aparentemente violentos, são as formas de destruição da identidade de uma comunidade pela via da inacção, pela ausência de estratégias de preservação, pela sua desvalorização perante as identidades vizinhas ou meramente por tácticas de esquecimento forçado. Como as consequências da inacção nem sempre têm uma dimensão facilmente perceptível no tempo curto, no curto prazo, só com a sua acumulação ao longo do tempo se vão fazer sentir os seus efeitos mais daninhos.
Neste tipo de estratégias, o tempo é um aliado natural, pois aposta-se, antes de mais, na instalação de um gradual esquecimento nas populações. Em primeiro lugar, as funções simbólicas de determinados espaços são deslocadas, deixando estes numa situação de progressivo abandono. Em seguida, procura-se fazer desaparecer, não as relembrando ou carregando fortemente nas que lhe são concorrentes, as memórias associadas a um determinado local/tradição que permanecem no imaginário colectivo. Por vezes, os nomes, de um edifício, de uma rua, são mudados. Em outros casos, graças a uma inacção criminosa, basta esperar que a decadência natural se instale para se justificar uma intervenção de posterior destruição.
Aos agentes, normalmente económicos e políticos, destas estratégias de obliteração da identidade podemos chamar constritores da memória, por oposição ao papel nobre de construtores da memória reservado por algumas sociedades a historiadores ou antropólogos, por exemplo.

A fase final deste processo, quando tudo está quase acabado e quando se fazem ouvir as poucas vozes críticas que restam, é a de alegar que, de qualquer maneira, já não adiantava preservar o que se encontrava num estado de irremediável degradação.
Este é o argumento mais cínico e hipócrita, quando surge na boca daqueles que, objectivamente, nada fizeram para inverter a situação, quando isso ainda era possível. Daqueles que, pela sua inépcia ou má-vontade, colaboraram na estratégia de esquecimento e destruição de memórias colectivas.
Este é o panorama que vivemos em Alhos Vedros e tudo isto vem a propósito do que se passou em nesta terra nos últimos 149 anos.
Em 2005, passam 150 sobre a sua perda de dignidade municipal, após perto de 500 anos em que foi sede de um concelho que foi sendo progressivamente amputado, originando diversas unidades administrativas: primeiro, o Barreiro; depois, o Lavradio (entretanto igualmente extinto); por fim, a Moita. Sob administração de Alhos Vedros, as terras que podiam ser suas concorrentes puderam prosperar e emancipar-se. Infelizmente, o inverso não foi verdadeiro.
Essa amputação física, embora dolorosa, não foi certamente tão dura como a sua progressiva subalternização na segunda metade do século XIX, dançando de acordo com as conveniências políticas e os interesses eleitorais da época entre o concelho do Barreiro e da Moita. Nem tão dura como o destino triste que lhe reservou todo um século XX de sujeição ao poder da Moita, terra de curtas tradições e que, à semelhança de todos os jovens poderes imperiais, espezinha os ascendentes ancestrais com a sua arrogância e ignorância.
A história de Alhos Vedros no século XX, apesar da exiguidade das suas gentes, é muito rica em si mesma, na sua vivência comum, mas muito triste quando verificamos tudo o que lhe foi feito pelos seus novos senhores.
Com antecedentes, mas com maior ímpeto durante o Estado Novo e sem inversão notória com o advento do Portugal democrático, a (in)acção do poder da Moita tem ajudado objectivamente a destruir tudo o que nos relembrava a Alhos Vedros de outros tempos, desde uma completamente esquecida Rua “Direita”, onde há 500 anos se centrava a vida da vila e o seu centro político-administrativo [1], aos humildes núcleos habitacionais de cariz popular que foram circundando a chamada “vila”.
De interesse económico cada vez menor devido ao seu abandono e degradação, sem um poder político com visão que perceba que o património e a identidade de um grupo humano não se faz apenas de edificações monumentais, tudo tem vindo a ficar corroído, a cair e a ser substituído pelo que de mais incaracterístico existe no urbanismo contemporâneo.
A ninguém com responsabilidades ocorreu nos últimos 20-25 anos que, com os vestígios de actividades dependentes do rio (as últimas salinas desapareceram na passada década de 90, um par de moinhos de maré ainda subsistem, a zona húmida do sapal resiste estoicamente aos avanços dos entulhos, das lixeiras e do cancro do Cais Novo) as suas abandonadas unidades fabris corticeiras, o resto do seu passado tardo-medieval e moderno, Alhos Vedros poderia ter sido preservada como uma espécie de museu vivo, não deixando degradar tudo o que se deixou, limitando os danos de um necessário progresso e investindo num tipo de qualidade de vida que está longe do mais óbvio mas que, nem por isso, tem menos valor.
Infelizmente, a nível local, o poder é detido por gente que associa o desenvolvimento a rotundas com touros, o progresso a urbanizações de 3ª ordem, a cultura à sua foto em cerimónias de inauguração de investimentos de utilidade duvidosa, feitos ao sabor dos calendários eleitorais, a preservação da natureza ao abate indiscriminado de árvores sempre que empecilham uma estrada ou uma urbanização de promotor amigo e a arte a qualquer coisa que se vê apenas em museus da capital.
E enquanto quem tiver o poder achar que um conjunto de pedras é sempre, e apenas, um conjunto de pedras (o templo de Diana em Évora, por exemplo não passa disso), dificilmente as coisas mudarão.

António da Costa


[1] Qualquer pessoa com um mínimo de conhecimento do traçado urbanístico medieval ainda consegue, mesmo se com um crescente esforço, identificar a malha urbana da Alhos Vedros de outros tempos, com as suas artérias paralelas ao rio, as ruelas de ligação, ou os espaços centrais de convivialidade.

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