A propósito e a despropósito das questões levantadas pelo blog Alhos Vedros ao Poder quanto à perda de identidade alhosvedrense, gostaria de partilhar convosco algumas recordações acerca do que foi ser de Alhos Vedros ao longo da adolescência e do início da idade adulta, ou seja, quando comecei a sair da terrinha. Quanto à infância, a questão não se punha, quer por inconsciência, quer porque não saía da terra se não com os meus pais.
Em primeiro lugar, lembro-me da sensação que foi ser o único aluno da Margem Sul na minha turma da Faculdade em meados dos anos 80. Em muitas dezenas de criaturas, eu era o único que fazia a travessia do rio todas as manhãs para receber uma educaçãozita universitária, enquanto o resto da malta era lisboeta indígena, das linhas de Sintra e Cascais e uns quantos perdidos da região do chamado Oeste.
Quando os meus colegas deram por isso fui rapidamente tido como “vermelho”. Com o aumentar da curiosidade perante o espécime, tentaram saber a minha proveniência exacta. Horror dos horrores, era da zona mais vermelha de todas, do concelho da Moita onde (juntamente com o Barreiro) o PC tinha regularmente votações que faziam corar de inveja grande parte do Alentejo.
Quanto eu tentava explicar que, mais exactamente, era de Alhos Vedros, recebia um olhar de espanto de volta, tipo, “O quê?”, “Donde?”, “O qu’é qu’é isso ?” ou “Alhos quê?”
Alhos Vedros era uma espécie de fim de mundo de que ninguém tinha ouvido falar. Digamos que, para todos os efeitos, a Damaia ou a nascente Chelas, gozavam de maior prestígio, se outra razão não existisse, porque eram conhecidas.
Por estranho que pareça, este tipo de reacção não era particularmente novo para mim.
Já desde a escola preparatória e a própria secundária da Moita que eu vivera, com muitos outros colegas de Alhos Vedros, o anátema de sermos de onde éramos. Nunca fiquei em turma com número ou letra muito adiante da penúltima – era sempre do 1º 11, do 2º 257 (ciclo), do 7º X, do 8ºY e do 9º Z (actual 3º ciclo). Nas minhas turmas, para além de 4 ou 5 de Alhos Vedros, existiam alunos do Rosário, do Chão Duro, de Sarilhos, do Carvalhinho mas quase nunca, valha-nos Deus, da própria Moita, do centro, digamos assim (quer dizer, acho que tínhamos um ou dois exilados, por qualquer razão estranha). Éramos um gueto multicultural à moda de então.
As meninas e os meninos da Moita ficavam nº 2º 1, nº 7º A, no 8º ou 9º B, quanto muito. Consequentemente, na Secundária, tinha sempre aulas lá para os cantos do fundo da Escola.
Para os maiorais pseudo-betos moiteiros da época, sempre com um humor de fino traço, éramos sempre o objecto de gozo e chacota: “Hé, hé, hé, és de Alhos Vedros ? Não tens vergonha ?”
Por acaso não tinha e, em situaçõs limite, a coisa resolveu-se à estalada.
Ser de Alhos Vedros era algo que nos queriam fazer sentir como vergonhoso, perante o poder político da Moita e o (crescente) poder económico da Baixa da Banheira.
Nuca percebi esta atitude de retardamento intelectual típica dos moiteiros perante o pessoal de Alhos Vedros.
Pior que tudo, nunca percebi porque muitos miúdos alhosvedrenses cediam à pressão e agiam como perfeitos moiteiros, aliando-se ao bando de imbecis que nos azucrinavam a mioleira.
Portanto, meus amigos(as), grande parte das décadas de 70 e 80 foram passadas num ambiente de defesa e quase auto-justificação pelo facto de ser de Alhos Vedros.
Com o tempo, e um pouco de conhecimento, fui percebendo o porquê de tamanha discriminação: ignorância, desrespeito, arrogância e pura e simples estupidez, como escreveu já aqui o António da Costa.
Ignorância do passado e desrespeito pelo presente, causadoras de grave arrogância e estupidez nos actos.
Contra tudo isso, aprendi que a solução só passa em parte pela indiferença.
Porque se nos excedermos na indiferença, o pé estará sempre pronto para nos pisar, a língua para nos vilipendiar, o poder para nos manter no atraso.
Por isso, precisamos de falar, escrever, deitar sempre que necessário cá para fora o que nos vai na alma.
E nunca, por nunca ser, pactuar com a ignorância, o desrespeito, a arrogância e a estupidez.
Filipe Fonseca
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