Como vem a propósito, cá vai bala:
Da Tauromaquia na Moita ou a Invenção da Tradição
A leitura do texto do vosso colaborador Manuel Pedro sobre o peso da tradição tauromáquica na Moita e sobre a possibilidade, a meio-caminho entre a seriedade irónica e a paródia séria, de criação de um imposto taurino, trouxe-me à memória uma das teses mais interessantes do historiador inglês Eric Hobsbawn.
Na obra The Invention of Tradition (Cambridge University Press, 1983), Hobsbawn e os outros colaboradores do volume analisam com profundidade o fenómeno conhecido por “tradição” e os processos pelo qual ele é criado ou, em grande parte das situações, forjado. Aquilo que muita vezes se apresenta como tradição identitária de uma região ou grupo humano não passa, afinal, de uma “tradição inventada”, quantas vezes em períodos bem recentes e historicamente bem definidos, e que ao ganhar crescente popularidade por razões conjunturais se vai tomando como uma prática comum de raízes imemoriais ou, no mínimo, seculares.
Vem isto a propósito da pretensa tradição tauromáquica da Moita.
Analisemos a questão com alguma atenção, esquecendo aquelas mitologias que radicam as tradições tauromáquicas lusas nas lutas com touros existentes na antiga ilha de Creta, porque essa é uma linhagem dificilmente demonstrável sem boa dose de imaginação e fantasia.
Em primeiro lugar, a tradição moderna, ou contemporânea, da tourada, tal como a conhecemos, em Portugal – a agora chamada “tourada à antiga portuguesa” – é uma diversão que vê os seus contornos definidos ao longo do século XVIII no contexto das formas de lazer do barroco tardio nacional, com destaque para os reinados de D. João V e D. José. Em praças com estruturas improvisadas e temporárias, as touradas tornam-se divertimento popular e aristocrático em simultâneo, beneficiando das atenções da Família Real quando têm lugar em Lisboa, particularmente defronte do Paço da Ribeira, antes do terramoto de 1755.
Em segundo lugar, as tradições populares locais de ligação de determinadas povoações a manifestações tauromáquicas, mesmo que com episódicas origens anteriores, só se vão cristalizando nos séculos XIX e XX, em contextos regionais relativamente circunscritos ao Ribatejo e a algumas zonas raianas do Alentejo. As “largadas” de touros vão-se tornando populares em momentos de festa, especialmente no Verão, quando as festividades estivais relacionadas com as colheitas se aliam aos festejos católicos evocativos de um(a) ou outro(a) padroeiro(a).
Ora bem, neste contexto, a tradição tauromáquica da Moita dita “do Ribatejo”, por conveniência e necessidade de distinção onomástica de outras Moitas algures, é um exemplo claro de uma tradição inventada para reforçar traços de identidade de uma localidade, de outra forma, sem particulares pergaminhos históricos.
Recordemos que a localidade da Moita é elevada a vila na sequência de um imbróglio legal com os privilégios e mercês de D. Francisco de Távora, sendo os seus limites e prorrogativas definidos na sequência de irregularidades várias que suscitaram à época acesa polémica (consulte-se a documentação constante na obra Moita – Vila há 300 anos publicada pela CMM, para comprovar o que se afirma). Então, como durante os 150 anos seguintes, a Moita era uma localidade de importância reduzida que, só pelas circunstâncias referidas, se emancipou do concelho de Alhos Vedros, com população e recursos escassos. O poder da Moita e os esforços para a criação de uma identidade própria só ganham verdadeira dimensão numa segunda fase do regime liberal, nas últimas décadas do século XIX, quando os rearranjos dos limites municipais são feitos ao sabor das conveniências eleitorais dos partidos do chamado Rotativismo e o mapa dos concelhos é delineado com base no interesse dos caciques locais.
No século XX, em especial durante o Estado Novo, a Moita consolida a mitologia da sua pretensa tradição ancestral. Esse é um período em que, um pouco por todo o país, a “tradição” é (re)inventada, tão ao gosto da ideologia salazarista que produziu a Exposição do Mundo Português. Todo o país é recoberto de pelourinhos, tristes simulacros dos genuínos, medievais ou manuelinos (como o de Alhos Vedros). A Moita ganha então o seu pelourinho, arrogando-se de um símbolo de um poder municipal sem verdadeira tradição.
É altura da fixação dos brasões municipais, da construção das obras emblemáticas das aldeias e vilas, que se pretendem as mais portuguesas de Portugal. Rasgam-se novas artérias, erguem-se as edificações mais representativas do período.
Na Moita, é o tempo da renovação da chamada “Avenida” (é mais uma alameda, mas...) a subir para o seu ponto alto – a Praça de Touros !!!
Outras terras organizam as suas artérias em função dos Paços do Concelho, da Igreja Matriz, do Tribunal. Alhos Vedros, por imposição urbanística do ilustre Presidente da Câmara moitense Vitor de Sousa viu a sua nova Avenida Bela Rosa travada e fechada pela Escola Primária. Pelo menos, e apesar de tudo, esse é um símbolo da Educação.
A Moita não ! Escolheu para topo da sua artéria mais representativa desses tempos uma Praça de Touros e arregimentou-se ao lote das terras que se arrogam de tradições tauromáquicas, sublinhando o facto de ser Moita “do Ribatejo”. A explicação da origem de tal topónimo é mais do que nebulosa. A linhagem no velho concelho ou terra do “Riba-Tejo”, dos séculos XII e XIII, é mais do que difícil, porque então a Moita era um aglomerado com meia dúzia de casotas e quintas. A ligação ao actual Ribatejo, e às tradições taurinas, é o exemplo mais acabado de uma tradição inventada, sem qualquer fundamentação razoável.
A tradição taurina da Moita é um gosto relativamente recente e, mais do que identidade, é como um desejo de ser outra coisa, diferente do que aquilo que se é. Se terras próximas, como a Aldeia Galega/Montijo ou até Alcochete tiveram durante muito tempo uma importante componente económica na pecuária, na criação de gado, que as liga um pouco aos costumes das planícies e lezírias do Tejo mais a montante, a Moita não é recordada por tal actividade.
Por outro lado, gostava de conhecer a fundamentação documental da antiguidade de tal tradição taurina que justifique o empenho que agora se demonstra na promoção e apoio a esta actividade, desde o poder autárquico (longe vão os tempos em que as touradas eram tidas como manifestações de conservadorismo reaccionário pela inteligentsia de esquerda) à imprensa local (vejam-se os frequentes encómios a qualquer iniciativa tauromáquica no Jornal da Moita ou mesmo a declaração de intenções manifestada em editorial recente de O Rio).
Não tenho nada contra a promoção da tauromaquia como ex-libris da Moita, mas com a condição de que esse é um símbolo da Moita, e não do seu concelho (terras com história bem mais antiga como Alhos Vedros ou o Barreiro, que pertenceram longamente à mesma unidade administrativa, não recordam tal passado). E, para finalizar, que essa promoção não seja feita à custa do forjar de uma memória histórica inexistente ou, pelo menos, bem diversa da que se pretende apresentar como legitimadora da tauromaquia como actividade maior do concelho, o qual é um todo e não apenas uma parte, mesmo que transitoriamente a sua sede.
A leitura do texto do vosso colaborador Manuel Pedro sobre o peso da tradição tauromáquica na Moita e sobre a possibilidade, a meio-caminho entre a seriedade irónica e a paródia séria, de criação de um imposto taurino, trouxe-me à memória uma das teses mais interessantes do historiador inglês Eric Hobsbawn.
Na obra The Invention of Tradition (Cambridge University Press, 1983), Hobsbawn e os outros colaboradores do volume analisam com profundidade o fenómeno conhecido por “tradição” e os processos pelo qual ele é criado ou, em grande parte das situações, forjado. Aquilo que muita vezes se apresenta como tradição identitária de uma região ou grupo humano não passa, afinal, de uma “tradição inventada”, quantas vezes em períodos bem recentes e historicamente bem definidos, e que ao ganhar crescente popularidade por razões conjunturais se vai tomando como uma prática comum de raízes imemoriais ou, no mínimo, seculares.
Vem isto a propósito da pretensa tradição tauromáquica da Moita.
Analisemos a questão com alguma atenção, esquecendo aquelas mitologias que radicam as tradições tauromáquicas lusas nas lutas com touros existentes na antiga ilha de Creta, porque essa é uma linhagem dificilmente demonstrável sem boa dose de imaginação e fantasia.
Em primeiro lugar, a tradição moderna, ou contemporânea, da tourada, tal como a conhecemos, em Portugal – a agora chamada “tourada à antiga portuguesa” – é uma diversão que vê os seus contornos definidos ao longo do século XVIII no contexto das formas de lazer do barroco tardio nacional, com destaque para os reinados de D. João V e D. José. Em praças com estruturas improvisadas e temporárias, as touradas tornam-se divertimento popular e aristocrático em simultâneo, beneficiando das atenções da Família Real quando têm lugar em Lisboa, particularmente defronte do Paço da Ribeira, antes do terramoto de 1755.
Em segundo lugar, as tradições populares locais de ligação de determinadas povoações a manifestações tauromáquicas, mesmo que com episódicas origens anteriores, só se vão cristalizando nos séculos XIX e XX, em contextos regionais relativamente circunscritos ao Ribatejo e a algumas zonas raianas do Alentejo. As “largadas” de touros vão-se tornando populares em momentos de festa, especialmente no Verão, quando as festividades estivais relacionadas com as colheitas se aliam aos festejos católicos evocativos de um(a) ou outro(a) padroeiro(a).
Ora bem, neste contexto, a tradição tauromáquica da Moita dita “do Ribatejo”, por conveniência e necessidade de distinção onomástica de outras Moitas algures, é um exemplo claro de uma tradição inventada para reforçar traços de identidade de uma localidade, de outra forma, sem particulares pergaminhos históricos.
Recordemos que a localidade da Moita é elevada a vila na sequência de um imbróglio legal com os privilégios e mercês de D. Francisco de Távora, sendo os seus limites e prorrogativas definidos na sequência de irregularidades várias que suscitaram à época acesa polémica (consulte-se a documentação constante na obra Moita – Vila há 300 anos publicada pela CMM, para comprovar o que se afirma). Então, como durante os 150 anos seguintes, a Moita era uma localidade de importância reduzida que, só pelas circunstâncias referidas, se emancipou do concelho de Alhos Vedros, com população e recursos escassos. O poder da Moita e os esforços para a criação de uma identidade própria só ganham verdadeira dimensão numa segunda fase do regime liberal, nas últimas décadas do século XIX, quando os rearranjos dos limites municipais são feitos ao sabor das conveniências eleitorais dos partidos do chamado Rotativismo e o mapa dos concelhos é delineado com base no interesse dos caciques locais.
No século XX, em especial durante o Estado Novo, a Moita consolida a mitologia da sua pretensa tradição ancestral. Esse é um período em que, um pouco por todo o país, a “tradição” é (re)inventada, tão ao gosto da ideologia salazarista que produziu a Exposição do Mundo Português. Todo o país é recoberto de pelourinhos, tristes simulacros dos genuínos, medievais ou manuelinos (como o de Alhos Vedros). A Moita ganha então o seu pelourinho, arrogando-se de um símbolo de um poder municipal sem verdadeira tradição.
É altura da fixação dos brasões municipais, da construção das obras emblemáticas das aldeias e vilas, que se pretendem as mais portuguesas de Portugal. Rasgam-se novas artérias, erguem-se as edificações mais representativas do período.
Na Moita, é o tempo da renovação da chamada “Avenida” (é mais uma alameda, mas...) a subir para o seu ponto alto – a Praça de Touros !!!
Outras terras organizam as suas artérias em função dos Paços do Concelho, da Igreja Matriz, do Tribunal. Alhos Vedros, por imposição urbanística do ilustre Presidente da Câmara moitense Vitor de Sousa viu a sua nova Avenida Bela Rosa travada e fechada pela Escola Primária. Pelo menos, e apesar de tudo, esse é um símbolo da Educação.
A Moita não ! Escolheu para topo da sua artéria mais representativa desses tempos uma Praça de Touros e arregimentou-se ao lote das terras que se arrogam de tradições tauromáquicas, sublinhando o facto de ser Moita “do Ribatejo”. A explicação da origem de tal topónimo é mais do que nebulosa. A linhagem no velho concelho ou terra do “Riba-Tejo”, dos séculos XII e XIII, é mais do que difícil, porque então a Moita era um aglomerado com meia dúzia de casotas e quintas. A ligação ao actual Ribatejo, e às tradições taurinas, é o exemplo mais acabado de uma tradição inventada, sem qualquer fundamentação razoável.
A tradição taurina da Moita é um gosto relativamente recente e, mais do que identidade, é como um desejo de ser outra coisa, diferente do que aquilo que se é. Se terras próximas, como a Aldeia Galega/Montijo ou até Alcochete tiveram durante muito tempo uma importante componente económica na pecuária, na criação de gado, que as liga um pouco aos costumes das planícies e lezírias do Tejo mais a montante, a Moita não é recordada por tal actividade.
Por outro lado, gostava de conhecer a fundamentação documental da antiguidade de tal tradição taurina que justifique o empenho que agora se demonstra na promoção e apoio a esta actividade, desde o poder autárquico (longe vão os tempos em que as touradas eram tidas como manifestações de conservadorismo reaccionário pela inteligentsia de esquerda) à imprensa local (vejam-se os frequentes encómios a qualquer iniciativa tauromáquica no Jornal da Moita ou mesmo a declaração de intenções manifestada em editorial recente de O Rio).
Não tenho nada contra a promoção da tauromaquia como ex-libris da Moita, mas com a condição de que esse é um símbolo da Moita, e não do seu concelho (terras com história bem mais antiga como Alhos Vedros ou o Barreiro, que pertenceram longamente à mesma unidade administrativa, não recordam tal passado). E, para finalizar, que essa promoção não seja feita à custa do forjar de uma memória histórica inexistente ou, pelo menos, bem diversa da que se pretende apresentar como legitimadora da tauromaquia como actividade maior do concelho, o qual é um todo e não apenas uma parte, mesmo que transitoriamente a sua sede.
AV1, então assinando-se como António da Costa
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