quarta-feira, julho 15, 2009

José Carlos Guinote: Corrupção e urbanismo: desatar o nó

Do número 4 da OPS:

Nenhuma reflexão sobre a ligação entre a corrupção e o urbanismo poderá ser feita sem nos debruçarmos sobre os mecanismos de geração das mais-valias simples e da sua captura e sobre os comportamentos dos agentes promotores das mudanças necessárias para elas se concretizarem. O Estado e os seus agentes desempenham um papel fundamental neste processo. A geração de mais-valias simples é trabalho e mérito absoluto do Estado e proveito total dos privados. No âmbito das suas competências constitucionais em matéria de urbanismo, o Estado toma decisões, sobretudo associadas à classificação e consequente mudança de uso dos solos, que permitem uma valorização brutal dos terrenos por elas abrangidos. Estamos a falar de solos rústicos que são classificados como urbanos sofrendo valorizações de centenas de vezes ou mesmo milhares de vezes o seu valor inicial. É essa valorização que estimula, como já escrevi, “a cada vez maior pressão dos usos urbanos sobre os terrenos rústicos e, em consequência, a pressão dos promotores sobre aqueles que, na Administração, têm o poder para decidir as indispensáveis mudanças de uso. (…)”. (1)

Os agentes das mudanças de uso do solo e os seus comportamentos não podem ser ignorados, em particular os agentes catalizadores e os agentes permissivos. Entre os primeiros identifico aqueles que mais lucram com a especulação imobiliária e a transformação dos terrenos rústicos em terrenos urbanizáveis. É o caso dos bancos, das grandes empresas imobiliárias, dos fundos de investimento, das seguradoras e de instituições dotadas de grande capacidade financeira. A sua capacidade financeira e uma aguda consciência do valor das mais-valias em jogo permitem-lhes actuar a médio e longo prazo pressionando tenaz e demoradamente as decisões da Administração.

Quanto aos agentes permissivos, eles são sobretudo as autarquias e os governos. Quem é que nunca escutou as declarações entusiásticas dos autarcas abrangidos pelos chamados investimentos estruturantes? Tomam a peito a sua função de agentes permissivos e clamam alto e bom som que o desenvolvimento, seja lá isso o que for, pode estar em causa se os processos não avançarem. Na última legislatura viram os seus clamores compensados com a criação dos famigerados PIN (Projectos de Interesse Nacional). A propósito, a crise financeira internacional veio ou não mostrar como não passa de uma miragem um modelo de desenvolvimento local apoiado na promoção imobiliária elitista e nesse tipo de desregulamentação das regras do urbanismo? Os PIN são, apenas e só, o reconhecimento de que o país tem duas políticas urbanísticas para a mesma parte do território: uma para os cidadãos comuns, arrogantemente implacável e restritiva para a mais comezinha melhoria das condições de habitabilidade, e outra para os promotores dotados de elevada capacidade financeira, que permite a ultrapassagem de todas as restrições impostas pelas políticas públicas de conservação da natureza ou pela simples legislação urbanística, tout court.

Da mesma forma, não existe a mais pequena hipótese de se travar a forte relação entre urbanismo e corrupção na sociedade portuguesa se não promovermos as mudanças necessárias no sentido da socialização das mais-valias urbanísticas geradas pelo processo de desenvolvimento urbano. Se não o fizermos continuaremos a ter o enriquecimento ilícito e os crimes urbanísticos, sem qualquer penalização hoje em dia, associados à captura das mais-valias. O nosso modelo de desenvolvimento urbano continuará a ser dominado pelos interesses dos promotores privados, que encaram a cidade como um negócio e os cidadãos apenas e só como consumidores. Assim sendo, continuará a não ser possível articular as políticas urbanísticas com uma política pública de habitação capaz de dar uma resposta efectiva às diferentes necessidades dos diferentes grupos sociais. Continuaremos a ter, a par de uma segregação espacial das populações organizada segundo a sua capacidade financeira, – a expulsão de 300 mil habitantes de Lisboa para a periferia em menos de 30 anos é disso o mais radical testemunho – mais de 700 mil famílias a viverem em condições de alojamento verdadeiramente indignas e um crescente endividamento dos portugueses por força da única forma de acesso à habitação de que dispõem: a sua aquisição com recurso a crédito bancário.

Apenas a socialização das mais-valias urbanísticas permite à Administração controlar o desenvolvimento urbano e promover uma política pública de habitação que materialize os princípios da coesão e da mistura social e que dê resposta ao desígnio constitucional do direito à habitação.

A situação actual alimenta-se de alguns mitos que diversos especialistas defendem, com muito sucesso, junto dos decisores políticos. Um dos mais nefastos é o de que o processo de desenvolvimento urbano é naturalmente deficitário. É este mito juntamente com o álibi do custo zero que legitima depois a entrega aos privados do controlo do desenvolvimento urbano. Naturalmente que o desenvolvimento urbano é deficitário, mas apenas e só porque neste modelo a Administração abdica em favor dos privados da captura e socialização das mais-valias urbanísticas, ficando depois com os encargos a longo prazo que ele acarreta. Na prática, no sistema actual, são os contribuintes que financiam, com os seus impostos, o desenvolvimento urbano, com a cumplicidade do Estado e proveito de alguns happy few.

Voltando à políticas de habitação, devemos referir que a resposta determinada pelo mercado, a de que dispomos desde há décadas, apenas permite responder à procura solvente, aquela com capacidade financeira própria ou capacidade de endividamento, excluindo todas as outras. Esta resposta feita pelo mercado organiza a localização espacial das famílias segundo a sua capacidade económica promovendo guetos de ricos e guetos de pobres, ficando estes cada vez mais afastados do centro das cidades, expulsos para as periferias hipertrofiadas. Compete depois ao Estado, mais uma vez com recurso ao dinheiro dos contribuintes, construir pesadas e sempre insuficientes infraestruturas de transporte que permitam o acesso de centenas de milhar de trabalhadores ao centro da cidade.

A socialização das mais-valias é pois o elemento central da mudança política a levar a cabo para desatar o nó que liga actualmente a corrupção ao urbanismo, garantindo ao mesmo tempo um melhor ordenamento do território e uma vida urbana mais justa, mais democrática, mais plural, com cidades mais humanizadas.
A mudança que defendo resulta da transformação do actual modelo introduzindo as seguintes alterações que aqui refiro de uma forma necessariamente resumida:
  • Todos os espaços rústicos que passem a integrar os perímetros urbanos não devem adquirir o estatuto de solos urbanizáveis. Esse estatuto só lhes será conferido em sede de Plano de Urbanização (PU) ou de Plano de Pormenor (PP), cuja elaboração será exclusivamente pública e decidida pela Administração.
  • Imediatamente após a aprovação de um PP ou PU, as mais-valias urbanísticas geradas devem ser tributadas, criando-se um imposto específico para estas situações que nada tem a ver com o imposto de mais-valias existente. Os Planos Directores Municipais (PDMs) devem incluir cartas de referência com os valores indicativos do imobiliário válidos para todo o território e para toda a Administração. A tributação incidirá sobre a diferença de valor entre o solo urbano e o solo rústico oficialmente fixadas.
  • Aos proprietários abrangidos deve ser dado um prazo não superior a 6 meses para decidirem se participam no processo de desenvolvimento urbano. Findo esse prazo, em caso afirmativo, deverão pagar o imposto de mais-valias urbanísticas e de seguida os custos do desenvolvimento urbano (taxas, custos de realização de infraestruturas, etc.).
  • Em caso negativo a Administração deve obrigatoriamente adquirir os terrenos pelo valor do uso existente antes da aprovação do Plano.
  • O Código das Expropriações deve ser revisto no sentido de consagrar o valor do uso existente como o valor da indemnização.
  • A Política de Habitação deve ter os seus objectivos definidos nos PDMs. Os PUs devem obrigatoriamente incluir um Plano Local de Habitação que deve tratar a habitação no seu sentido mais amplo e não reduzida às questões da habitação social.
  • O Programa Nacional de Política de Ordenamento do Território (PNPOT) deve ser revisto no sentido de tornar os objectivos de coesão social e de mistura social imperativos deixando de depender da “sensibilização” dos promotores.
Esta mudança política deve ser feita em nome da esquerda, assumindo essa mesma esquerda a capacidade para fazer as mudanças efectivamente transformadoras da sociedade numa direcção progressista e de justiça social. Transformação que tarda para desespero de muitos e proveito de muito poucos.

(1) José Carlos Guinote, "Urbanismo e Corrupção. Mais Valias: Quem as gera e quem as captura", e ainda "Urbanismo e corrupção: as mais-valias e o desenvolvimento urbano", Le Monde Diplomatique - Edição Portuguesa, Agosto 2008.

1 comentário:

Anónimo disse...

Assim em jeito de leitura transversal a "socialização" das "mais-valias" afigura-se como um sem sentido ideológico, pois não se trata de socializar uma riqueza, mas socializar uma riqueza fundamentada - queiram ou não - na especulação.
E qual seria o valor justo neste caso de especulação social?
Aquele que o Estado receberia?
Ou aquele que o Promotor pagaria?
São dificieis os negócios em que ambas as partes ficam a ganhar. Normalmente, a prazo verificamos que há sempre uma que perde.
Novos conceitos procuram-se.