No século vinte e sete, na cidade de Alcochete, vivia o Sr. Roquete, que vendia sabonete.
A cidade de Alcochete era uma bela cidade, com prédios de mil andares e fábricas aos
milhares. Tinha jardins com árvores fingidas e flores de plástico, rampa de foguetões e outras atracções, entre elas uma praça de touros fenomenal, com touros de aço, telecomandados.
Só havia um senão, na cidade de Alcochete... era um certo cheirete, que subia do antigo rio Tejo, transformado no maior cano de esgoto da Península Ibérica, e descia de um enorme chapéu de fumo das chaminés industriais.
Por isso o Sr. Roquete vendia tanto sabonete.
Sabonete de limão para quem cheirava a alcatrão.
Sabonete de ananás para quem cheirava a aguarrás.
Sabonete de manjerico para quem cheirava a penico.
Com o dinheiro dos sabonetes, o Sr. Roquete ficou rico e comprou o que as pessoas ricas costumavam comprar: um prédio para morar, um carro para andar, um foguetão para viajar.
O prédio que comprou ficava num bairro moderno, onde os arranha-céus eram tão juntos que a luz do sol nem no Verão lá conseguia chegar.
Farto de escuridão, meteu-se no automóvel para dar um giro, mas era tal o trânsito que levou dois dias a percorrer as Avenidas Centrais e, quando finalmente quis estacionar,
só arranjou lugar na vizinha cidade de Santarém. (...)
Como as pessoas ricas, mandou construir fábricas: uma fábrica de bifes em pó, outra de bombas invisíveis, outra de tecidos magnéticos que repeliam as nódoas... e mais três enormes chaminés começaram a esguichar fumo encarnado, preto, amarelo. (...)
Certo dia, ao sentar-se como habitualmente no cadeirão, o Sr. Roquete, num espanto horrorizado, verificou que dali já não podia ver a televisão.
- De que me serve ser rico? De que me serve ser rico! – barafustou ele.
Num ímpeto de fúria, saltou para o super-foguetão, acelerou, acelerou, acelerou, até que o fumo se fez névoa, claridade total e ao longe surgiu uma bola azulada.
Aproximou-se, accionou o mecanismo de aterragem, descendo finalmente num planeta desabitado.
O ar era fresco, leve. E, melhor que o perfume do sabonete de Alcochete, era o cheiro real do limão, do ananás, do manjerico.
O Sr. Roquete construiu uma cabana, semeou horta, plantou pomar e sentia-se completamente feliz quando... viu chegar outro foguetão.
Mais um homem que fugia da Terra em busca do paraíso.
Na semana seguinte pousaram duas famílias completas...
Na outra, apareceu uma excursão de trezentos empreiteiros.
Um mês depois iniciaram-se as escavações para alicerces, asfaltaram-se ruas, montaram-se esgotos.
A fama do novo planeta alastrava.
Cidades inteiras se despovoavam. A Terra ia ficando vazia. (...)
Um dia, o chapéu de fumo do novo planeta atingiu as casas, entrou pelas janelas, impediu o Sr. Roquete, sentado no cadeirão, de ver televisão.
Então o velho, valeroso vendedor de sabonete, sem se dar por vencido, saltou para o foguetão, soltou o travão, carregou num botão, acelerou, acelerou, acelerou para além do fumo, da névoa, rumo à claridade e viu ao longe um planeta lindo, luzindo como uma lanterna.
Aproximou-se através da noite.
Desceu numa pista abandonada e, quando olhou em volta, reparou que estava na cidade de Alcochete. Os automóveis tinham enferrujado, os prédios eram gigantes silenciosos e em cada chaminé havia um ninho de cegonhas.
Foi andando à toa pelas ruas desertas até ao rio. Amanhecia. Do Tejo, limpidamente azul, subia o livre perfume da maresia.
Luísa Ducla Soares, in Três Histórias do Futuro
postado por AV2
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1 comentário:
Assustadoramente delicioso.
Gostoso mas arrepiante.
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