quarta-feira, setembro 29, 2004

Proposta de plataforma de acordo

Para discutirmos aqui as questões do aborto ou IVG (conforme as sensibilidades) e apesar de esse ser um tema que foge aos propósitos primeiros do blog, gostaria de deixar aqui um punhado de princípios básicos para ser entendida a minha posição pessoal.
Contra os defensores do aborto, quase a qualquer preço, tenho as seguintes reservas:

a) Não considero válida a afirmação de que isso corresponde ao “direito da mulher dispôr livremente do seu corpo”. Quando interrompe a gravidez, a mulher não está apenas a agir sobre o seu corpo, mas igualmente sobre um outro corpo dentro de si. Salvo submissão a violência física, violação, grassa ignorância ou grave acidente nos meios anticonsepcionais, o direito da mulher a dispôr do seu corpo devia ter sido posto em prática antes de ficar grávida. Não tenho nada contra o sexo pré-conjugal, (pratiquei-o, quando possível) ou contra um alargado leque de prazeres sexuais em qualquer altura da vida (idem, aspas, aspas), mas acho que a m(p)aternidade é demasiado séria para acontecer por acaso ou acidente, como já algumas pessoas que conheço me afirmaram, com ar meio displicente.
b) Discordo frontalmente da estratégia “de luta”, ou “de pressão” de grupos que só aparecem nos momentos mediáticos da discussão do assunto, do género daquelas meninas/senhoras a que chamaria “Bloquetes”, da Catarina Portas à Margarida Martins (em ordem crescente de volume), passando por Margaridas e Claras Pinto Correia, etc, etc, que vão em romaria à Assembleia da República para ficarem no retratro e mostrarem como têm consciência social. No resto do tempo, não fazem nada para resolver o drama dos abortos ilegais, mas pronto.

Contra quem se opõe ao aborto, penso que:

a) É profundamente demagógico afirmar o direito à vida, sem definirem o que entendem por “vida”. Se é no sentido lato, estamos tramados, porque vida é muita coisa. Os animaizinhos também são criaturas de Deus e penso que até as plantas. Não é por isso que os deixamos de comer ou dizimar. Se é vida no sentido restrito de “vida humana”, podemos cair numa de duas situações: ou estamos apenas a defender a nossa espécie por oposição às outras, que também representam vida; ou estamos a valorizar a vida humana acima de qualquer outra com base em argumentos religiosos que, como me parece evidente, são bastante relativos e oscilam com os indivíduos, não devendo ser impostos à força, por via da lei.
b) A Liberdade, que muitos apregoam, é a liberdade de cada um de nós agir livremente, desde que não limitemos a liberdade alheia ou então a acção livre resultante de um compromisso consensualmente aceite pela sociedade. Sei que os mecanismos formais para a legitimação desta segunda opção são complexos, mas penso que se percebe a ideia. Portanto, uma facção não deve impôr a sua forma de ver as coisas e de agir aos outros. Nesta perspectiva, a limitação da IVG de acordo com os padrões dos grupos “pró-vida”é claramente uma limitação da Liberdade de parte da sociedade. Penso que se percebe que não estou a dizer que um grupo que defenda massacres em massa deve ser respeitado pelo resto da sociedade porque, aqui, está claramente a violar a liberdade alheia.

De tudo isto, resulta que é necessário esclarecer dois pontos: Do que falamos, quando falamos em vida (humana, com consciência de si enquanto matéria viva e com capacidade para sofrer com a morte) e quando é que podemos considerar que a vida “humana” existe.
Essas são questões centrais, que a ciência ainda não consegue responder cabalmente. No entanto, não é por isso, que devemos deixar que a decisão seja tomada unilateralmente com base em dogmas religiosos, por vezes tão relativos, localizados e transitórios como os paradigmas científicos. E nunca devemos deixar que sejam decisões meramente de conveniência, agenda política e/ou estratégia partidária, mais ou menos “fracturante”, a decidir questões desta amplitude.
Sobre estes aspectos (ciência vs religião vs política), mais fundos, da questão escreverei mais tarde.

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