sexta-feira, outubro 01, 2004

A falácia do utilizador-pagador

Na cartilha pseudo neo-liberal dos tempos que correm, e perante a inépcia com que são conduzidas as contas do Estado, foi ganhando popularidade o conceito do “utilizador-pagador” no que se refere a serviços prestados pelo Estado.
De acordo com esta tese peregrina, quem utiliza um determinado serviço (Saúde, Justiça, etc) ou infraestrutura (auto-estradas) do estado deve pagar uma taxa destinada a cobrir parte dos custos da sua execução/funcionamento.


Ora bem, tudo isto é muito bonito mas encrava num par de aspectos básicos que quase todos fazem por ignorar, para não serem apelidados de comunistas.

1) Todos nós já pagamos impostos para que esses serviços ou estruturas se criem e mantenham em funcionamento. Se os impostos não chegam a solução é fácil (aperte-se a fiscalização à evasão fiscal) ou muito fácil (aumentem-se os impostos), mesmo se não é necessariamente popular. Não podemos querer que andemos a pagar impostos ao Estado, para depois dizerem que devemos pagar taxas adicionais quando precisamos das contrapartidas desse mesmo Estado. Ou fazem as contas e decidem o que faz falta ou então dediquem-se a outra actividade. O objectivo da máquina fiscal é prover o Estado dos recursos necessários para colocar em prática políticas NACIONAIS, de que beneficiem TODOS os cidadãos. Quem ganha mais, paga mais (pois, pois... só na teoria), tanto atendendo à base dos rendimentos sobre a qual incide o imposto como à própria progressividade dos escalões do IRS. Se a máquina fiscal funcionar de forma eficiente e imparcial, o modelo é bom. Os seus gestores e/ou executores é que o poderão não ser.
2) Afirmar que só devem pagar um serviço ou infraestrutura aqueles que o(a) utilizam é dar um passo para a completa fragmentação fiscal do país, para não dizer que é a defesa do fim da solidariedade nacional, e social, em termos fiscais. Seguindo essa lógica, e à (falsa) moda da Madeira, passam-se a reter os impostos nas regiões de que são os pagadores e só se usam esses dinheiros em obras regionais ou locais. Por que razão terei eu que contribuir para hospitais por todo o país, se só utilizo o do Barreiro e Setúbal ou o posto de Saúde de Alhos Vedros ? Quero lá saber do de Mondim de Basto, do hospital de Abrantes ou do da Guarda ? É isso que os defensores do princípio do utilizador-pagador pretendem ? É particularmente erróneo este tipo de argumentação, porque assim mais vale voltarmos aos tempos do Antigo Regime, em que os impostos se lançavam só à medida das necessidades; quando era necessário um gasto extraordinário lançava-se uma derrama para o efeito e pronto. É preciso o Aqueduto das Águas Livres, crie-se o real d’água e estamos falados. Esquecem-se os arautos destas “novas” ideias que assim poderemos todos contestar as transferências de dinheiros do Estado para as zonas menos desenvolvidas, ou para cobrir os défices das regiões autónomas, com base no argumento de que não usamos os túneis do Alberto João ou as circulares e rotundas do Carlos César ?

Pelo que fica resumidamente exposto acho que é muito desonesto vir afirmar que o princípio do “utilizador-pagador” é mais justo do que o de contribuirmos todos para aquilo que devem ser políticas NACIONAIS de promoção de um desenvolvimento SOLIDÁRIO. Se as contas do Estado não permitem os gastos indispensáveis ao desenvolvimento do país, expliquem-nos onde foram parar os milhões que a CEE/EU fez pingar todos os anos em Portugal durante quase 20 anos.
Se somarmos tudo bem somadinho, facilmente veremos que o que cá entrou foi bem mais do que o que apareceu feito em prol do bem comum.
O que falta andou muito mal distribuído, enchendo os bolsos (privados) de muitos (boys e girls do sistema mais os friends) que agora aparecem (em público) a carpir mágoas sobre a falta de recursos financeiros do Orçamento de Estado para cobrir despesas que deveriam estar mais do que pagas.
Vergonha é que falta neste país.
O resto, se vergonha houvesse, até se arranjava.

António da Costa

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