domingo, janeiro 30, 2005

Memórias de um BeDófilo em Alhos Vedros III



Cap. III – Os primeiros heróis

Quando se começava a ler banda desenhada, não se era muito esquisito com os heróis. Apenas se queria que eles existissem e resolvessem todos os problemas. Claro que o Major Alvega ou o Kit Carson nos pareciam melhores do que aqueles heróis ocasionais de histórias passageiras ou mesmo do que os personagens da Disney. O que interessava mesmo eram as histórias e as suas peripécias nos mais variados cenários, de exploração do Oeste americano com os malvados índios, na selva sempre em risco de ser atacado por animais ferozes, na Idade Média roubando aos ricos para dar aos pobres ou em guerra contra o sanguinário Hitler.
Mas, com o passar do tempo, por entre a miríade de heróis que surgiam nos livros de colecções que hoje acharíamos anónimas (Interpol, Guerra, Condor, Apache, Caravana Oeste, Aventuras do FBI, entre muitos etc), começariam a afirmar-se alguns que se mostravam mais duradouros e que, graças a quem tinha irmãos um bocado mais velhos, descobríamos que já vinham de há muitos anos atrás, para além do nosso próprio nascente sentido estético e literário nos começar a dizer que havia algo de melhor naquelas séries.
É esse o tempo da consolidação do gosto pelos clássicos americanos: o Fantasma, Mandrake, o Príncipe Valente, Jonhy Hazard (João Tempestade nos tempos da Censura), o Agente X-9, Flash Gordon, Garth, Brick Bradford, Tarzan, Rip Kirby ou Cisco Kid. Os desenhadores e os argumentistas ainda não nos interessavam. Ninguém distinguia muito bem a diferença entre os vários ilustradores do Tarzan (Hal Foster ? Burne Hogarth ? Russ Manning ? Joe Celardo ?) ou entre o traço do Alex Raymond no Flash Gordon e no X-9, muito menos as subtilezas dos argumentos. Baralhava um pouco era o facto dos nomes, a certa altura, terem mudado, pois as revistas dos anos 60 só pareciam ter heróis portugueses como o Luís Euripo.
Um outro campo completamente diverso dos heróis, a que eu nunca consegui aderir, foi o dos super-heróis da Marvel, cá divulgados em edições brasileiras. Capitão América, Homem-Aranha, Thor, Namor, Demolidor, Quarteto Fantástico, Hulk, bem como os mais antigos Super-Homem, Batman, nunca me conseguiram seduzir devido, quase por certo, ao carácter muito concreto da minha mente infantil que se interrogava sobre aqueles mundos completamente delirantes e aqueles poderes perfeitamente inverosímeis para mim. Se os efeitos da kryptonite sobre o Clark Kent ou de uma aranha radioactiva sobre o Peter Parker ou mesmo as taras do ricaço Bruce Wayne eram aceites com alguma desconfiança, as capacidades do Homem de Borracha e as transformações do Bruce Banner em Hulk nunca conseguiram ultrapassar o limiar do cepticismo. Super-herói lia-se quando não havia mais nada.
A grande mudança quanto aos heróis, para mim, deu-se quando descobri a escola franco-belga do Spirou e do Tintin: Michel Vaillant, Bernard Prince, Bruno Brazil, Blueberry, Luc Orient, Buck Danny, Dan Cooper, Blake e Mortimer, Ric Hochet (Lucky Luke e Astérix merecem tratamento à parte) pareciam-me muito mais naturais e reais e, a partir de então, acabaram por tornar-se leitura preferida e recorrente, sempre retomada com prazer.
O fim da infância, ou da adolescência mais simplória nesta matéria, deu-se quando uma das histórias que mais gostei de ler foi A História sem Heróis, de Danny e Van Hamme (álbum da Bertrand em 1980 depois de publicação no Tintin), na qual aprendi, voltando aos meus primórdios, que o que importava era a história, não os heróis.

António da Costa, 28 de Janeiro de 2005

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