domingo, março 06, 2005
Memórias de um BeDófilo em Alhos Vedros VII
Cap. VII – O sistema de trocas
Um aspecto essencial da existência de qualquer fanático de Banda Desenhada durante o final da infância e início da adolescência, passava pelo intrincado sistema de transacções que nos permitia ler o material uns dos outros.
Mesmo que só tivessemos um par de dezenas de livros de quadradinhos, conseguíamos ler umas boas centenas se fossemos bem relacionados e tivessemos moeda de troca para aliciar os amigos a emprestarem-nos os seus livros.
As trocas podiam ser feitas livro a livro mas as melhores, e mais complexas, envolviam dezenas de livros de cada vez. O sistema não era simples, porque, à moda dos tempos em que não havia moeda e se fazia troca directa de matérias-primas e alimentos, era necessário estabelecer equivalências entre o que se emprestava e se recebia emprestado, em especial quando os envolvidos não eram muito amigos e apenas se conheciam ao de leve.
Quando a coisa se passava com vizinhos ou grandes amigos, podíamos emprestar 4 livros da colecção Falcão e receber em troca uma dezena de libros da colecção Combate e mais umas Aventuras do FBI; mas, quando a troca se fazia entre, digamos assim, um tipo das Morçoas ou das Arroteias e um da “vila” que só se viam ocasionalmente na escola, eram necessários cuidados adicionais. O método mais simples, era assinar os livros de forma bem visível, para depois detectar se algum livro nosso era “desviado” mas nem sempre isso era suficiente.
Os principais aspectos a ter em conta em trocas eram a qualidade do livro, a sua dimensão e se era a cores ou a preto e branco. Dificilmente alguém emprestava uma dúzia de Tintins em troca de quantidade equivalente de Façanhas do Oeste ou álbuns de capa dura da Bertrand por livrinhos da colecção Condor. O mesmo se passava com colecções que se queriam ter completas. Quando comecei a colecionar semanalmente o Mundo de Aventuras só os emprestava a quem fosse de extrema confiança.
O sistema de equivalências era complexo, no sentido de precaver o incumprimento da transacção pelas partes. Nada tinha de muito científico ou mesmo lógico, pelos padrões dos adultos, mas normalmente funcionava.
Outro problema era o prazo do empréstimo, o qual dependia da quantidade de livros emprestados e da frequência do contacto entre os contratantes: um ou dois dias ou uma semana. Aqui é que se davam com frequência os conflitos, quando alguém queria ter de volta os seus livros e nada. Aquele a quem tinham sido emprestados, atrasava a entrega com as maias mirabolantes desculpas. O que é que tinha acontecido na realidade ?
Para aumentar o valor da sua mercadoria, muitos eram os que reemprestavam os livros alheios a terceiros, logo que os liam, para obter mais leitura e, depois, era complicado gerir toda a situação se, pelo meio, alguém não cumpria a sua parte.
As disputas resolviam-se principalmente com ameaças e ofensas pessoais, mas não estavam excluídas as queixas aos respectivos pais e mães ou mesmo a boa e velha sessão de porrada. Ainda me lembro de, uma vez, a coisa ter misturado os dois aspectos, porque a mãe de um amigo e vizinho meu, perante as queixas do filho de que eu não tinha devolvido todos os 40 livros (!!)emprestados (de uns pequeninos, de cowboys, que misturavam texto e algumas imagens e de que já nem lembro o nome), me ter apanhado em plena rua e me ter ameaçado com uma tareia. Como eu tinha ficado com uns quatro daqueles livros para compensar dois que me tinham sido rasgados dos que lhe tinha emprestado, e eu achava isso de elementar justiça, fui para casa queixar-me à minha mãe e, então, a discussão subiu uma geração porque ela não gostou de saber do que se tinha passado.
A coisa resolveu-se mas não a total contento para mim, porque depois de se entenderem a bem, as respectivas mães concordaram em proibir-nos de emprestarmos livros um ao outro.
Em suma, todas estas peripécias faziam parte do colorido da situação e, por muitas discussões que acontecessem, dias depois lá estávamos nós de novo com os sacos de livros à porta uns dos outros à procura de novidades.
António da Costa, 5 de Março de 2005
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