sexta-feira, agosto 08, 2008

Urbanismo e corrupção: as mais-valias e o desenvolvimento urbano

Longo artigo do Le Monde Diplomatique, de que aqui se transcrevem alguns excertos:

O urbanismo no seu sentido mais amplo é uma actividade eminentemente democrática que remete para as escolhas políticas informadas, para o debate e a confrontação entre diferentes projectos políticos sobre a pólis, para a existência de cidadãos activos e informados com vontade de participar e de agir em defesa dos seus interesses individuais ou de grupo. No urbanismo o que se deve valorizar é a confrontação, a discussão, o debate, a validação de hipóteses e a sua rejeição, a oposição entre os contrários, a escolha e a decisão democráticas. Não estamos perante uma actividade neutra ou asséptica servida por um tecnicismo iluminado, de preferência com a chancela universitária, capaz de garantir por si só a qualidade da «nossa» política por oposição a uma «outra» política.

O debate urbanístico, sendo o tempo por excelência do debate democrático sobre o futuro da pólis, é o tempo por excelência da democracia participativa, o tempo da recusa do determinismo fatalista na construção do nosso futuro.

Percebe-se com facilidade que num país em que o debate político está marcado pelo fatalismo, pela política do «tem que ser», do «não pode ser de outra maneira», do «é a globalização», o debate urbanístico tenha estiolado e não tenha passado de um nível incipiente. Percebe-se, por isso, que cada vez mais as soluções sobre política urbanística sejam servidas aos cidadãos já «prontas», poupando-lhes o incómodo da participação. Numa sociedade em que o poder representativo se sente ameaçado pelo poder participativo, em que o poder político idealiza o cidadão como alguém que não participa, não opina, não luta, não se manifesta, o debate e a prática urbanísticas tendem a definhar. Abundam por aí processos de revisão dos instrumentos de planeamento urbanísticos muito «participativos», abertos à «discussão e à participação de todos» mas que se organizam ao longo de estreitos carreiros em torno da «ideia única», em que as conclusões precedem o debate e nos quais a prévia discussão sobre os caminhos já percorridos são encarados como actividades hostis e por isso simplesmente eliminadas. O debate urbanístico tem hoje um único campo de desenvolvimento aceitável pelo poder político dominante ao nível central ou local, seja ele qual for: despolitizar-se porque, pasme-se, a política é assumida como uma actividade impura capaz de contaminar a pólis.

O tecnicismo dominante, cuja maior expressão já não é apenas o pequeno conjunto dos que fazem as leis mas também o pequeno grupo, quase omnipresente, dos que põem e dispõem sobre estratégias e modelos de desenvolvimento e de financiamento, transmite-nos a ideia de que as escolhas feitas, e a fazer, não têm qualquer relação com os projectos políticos em presença e são do domínio do inevitável.

Um exemplo desta anulação da dimensão política da pólis está evidente na recente discussão sobre o Plano Estratégico da Habitação apresentado pelo governo em Maio deste ano. Na análise aí efectuada sobre as tendências recentes da questão habitacional em Portugal resume-se que «o adiamento da resolução da questão [da habitação] foi ainda penalizada pela necessidade de organização num espaço de tempo muito curto, num registo universalista de cobertura e num contexto económico internacional adverso, dos três pilares fundamentais do Estado-Providência: a segurança social, a saúde e a educação».

Trata-se de uma descrição fantasiosa da realidade. Entre os Direitos e Deveres Sociais definidos na Constituição, o direito à Habitação e ao Urbanismo estão no mesmo plano que o direito à Saúde, à Educação, à Segurança Social e ao Ambiente e Qualidade de vida. Fica por demonstrar a justeza de uma incompatibilidade, mesmo do ponto de vista orçamental, entre o desenvolvimento dos pilares referidos e uma aposta firme na concretização do imperativo constitucional de uma habitação condigna para todos com o Estado obrigado a «programar e executar uma politica de habitação inserida em planos de ordenamento geral do território e apoiada em planos de urbanização que garantam a existência de uma rede adequada de transportes e equipamentos social». Aliás, como se garante o direito à educação e à saúde sem garantir o direito à habitação? Hoje parece evidente, em muitos países, que a própria rigidez do mercado do emprego é muito mais consequência das políticas de habitação adoptadas do que de uma pretensa rigidez da legislação laboral. Nesses países iniciou-se já um processo que visa conjugar emprego com habitação.

A situação em Portugal é, naturalmente, fruto de escolhas e de opções políticas. O carácter inevitável dessas escolhas é uma fantasia. Tratou-se de opções que tiveram consequências: uns ganharam e outros perderam.

No contexto da União Europeia não existe uma política comum de habitação. Existem países que adoptaram políticas de natureza mais liberal e outros em que a intervenção reguladora do Estado permitiu melhorar as respostas às necessidades dos diferentes grupos sociais. Portugal integra o primeiro grupo, situando-se no conjunto dos países que gastam menos do que 1% do produto interno bruto (PIB) na sua política de habitação. Apenas a título de exemplo, refira-se que a Suécia gasta 4,1% e a Holanda 3,2%.

Recentemente, numa análise às diferentes concepções europeias da habitação social, Portugal era referido como um país com um mercado habitacional caracterizado pela elevada taxa de moradores-proprietários, por ter uma oferta de arrendamento privado residual e um sector de arrendamento social apenas orientado para a resposta às necessidades de habitação de pessoas desfavorecidas.
Há uma recusa em discutir as políticas e as suas consequências. As políticas seguidas conduziram a este resultado: endividamento progressivo das famílias, insustentável a prazo como agora se sabe, fortalecimento do sistema bancário cujos activos são em grande parte fruto do crédito à habitação.
Em 2005, nas conclusões da minha tese de mestrado escrevi que «os PDM [Planos Directores Municipais] devem estabelecer os objectivos da política de habitação que se pretendem adoptar para o município. Devem caracterizar a situação existente e as diferentes procuras a que importa dar resposta. Devem explicitar os objectivos de combinação de usos, evitando uma situação de produção de fogos comandada pela oferta, a monofuncionalidade do sistema urbano e a segregação espacial das populações. Devem estabelecer a percentagem de fogos a construir para cada um dos usos, aquisição de casa no mercado livre, arrendamento privado, arrendamento social, entre outros». Quando da aprovação dos PU, estes devem incluir um Plano Local de Habitação que concretize para o nível do PU as propostas gerais do PDM. O Plano Local de Habitação deve tratar da habitação entendida no seu sentido mais amplo e não reduzida às questões da habitação social. Deve fixar as grandes linhas de acção para um indispensável reequilíbrio da oferta residencial, a diversificação e a requalificação dos quarteirões muito tipificados».
Não pretendendo este artigo fazer uma análise das políticas de habitação, não queria deixar de salientar que qualquer discussão urbanística fica grosseiramente incompleta se não incluirmos a discussão sobre a política habitacional. Em particular a discussão sobre as mais-valias urbanísticas, estando ligada aos modelos de desenvolvimento urbano e às questões da política de solos, liga-se inevitavelmente às opções que se adoptam ou não em termos de políticas de habitação. Voltemos por isso à reflexão sobre as mais-valias urbanísticas.
(...)
Conclusão
Este é um debate que não está sequer aberto na sociedade portuguesa. No entanto, a análise das especificidades do nosso sistema de planeamento e a comparação com um conjunto alargado de países permitem avançar algumas propostas. Os erros e as omissões actuais têm solução, essa é a principal mensagem que queremos deixar. Não estamos no domínio das fatalidades. Estamos no domínio das escolhas políticas e das consequências dessas escolhas.
Entre aqueles que lutam para combater a corrupção na nossa sociedade defende-se muitas vezes que aquilo que faz falta não é certamente mais legislação. Atrevo-me a discordar no que se refere à relação particular entre urbanismo e corrupção. Como ao longo deste texto tentei demonstrar, a corrupção alimenta-se das insuficiências e das omissões de uma legislação que parece desenhada a régua e esquadro para a favorecer. Estas omissões são a face visível de uma política concreta que, como acontece na supostamente inexistente política de solos, aparenta ser uma ausência de política.
Não necessitamos de mais legislação. Necessitamos de melhor legislação, de uma legislação diferente que seja a tradução prática de uma aposta firme no combate à corrupção e na promoção de um ordenamento do território sustentável a longo prazo. Um ordenamento do território que não descrimine os cidadãos e não promova o empobrecimento dos recursos naturais.
A cativação ou a tributação das mais-valias são condições sine-qua nom para o conseguirmos. Tal como a coordenação entre a administração fiscal e a administração urbanística e a estabilidade das regras do urbanismo. A fixação em sede do PDM de cartas com os valores de referência do solo para todo o território municipal, concretizando a segmentação do mercado de solos pelos diferentes usos e dentro de cada uso específico para os diferentes segmentos da procura.
A definição nos PDM dos objectivos da política de habitação que se pretende adoptar para o município e a obrigatoriedade de elaboração dos Planos Locais de Habitação em sede de Plano de Urbanização, que devem tratar da habitação entendida no seu sentido mais amplo e não reduzida às questões da habitação social. Instituir o carácter imperativo do planeamento. Depois de aprovado um Plano de Pormenor o município deve iniciar o processo de urbanização e os proprietários devem escolher num prazo de seis meses entre associarem-se ao desenvolvimento ou cederem os seus terrenos. A revisão do Código da Expropriações, no sentido de consagrar o valor do uso existente como o valor da indemnização.
Não será possível alterar tudo isto sem alterar significativamente os actores mas isso passará, entre outra medidas, por realizar as reformas na arquitectura do poder local reforçando o controlo democrático do exercício do poder executivo.

Notas finais
1. Devo reconhecer que existe algum exagero na afirmação de que os privados capturam a totalidade das mais-valias simples. Uma parte será, afinal, «reinvestida» no financiamento partidário e no enriquecimento ilícito de alguns dos agentes. Mas esses serão os custos da perpetuação do sistema e decorrem no campo da economia paralela. Aí o urbanismo nada pode fazer. A ajuda faz-se a montante, na definição da arquitectura do sistema de planeamento territorial e aí dita a sua lei a vontade política. Ou a falta dela.
2. Este artigo é complementado pelo publicado no número de Agosto do Le Monde diplomatique – edição portuguesa, intitulado «Mais-valias: quem as gera e quem as captura». Nesse artigo refiro logo no inicio do texto que «algumas vozes começam a fazer-se ouvir, denunciando a imoralidade económica que a captura, pelos privados das mais-valias constitui». Referia-me ao engenheiro Pedro Bingre em declarações ao jornal Expresso de 5 de Novembro de 2005.


Por JOSÉ CARLOS GUINOTE *
* Engenheiro Civil pelo Instituto Superior Técnico (IST-UTL), mestre em Planeamento Regional e Urbano pela UTL com a tese «A Formação do Preço do Imobiliário e o Sistema de Planeamento Territorial».
Co-autor do blogue http://www.pedradohomem.blogspot.com/.

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