quinta-feira, outubro 20, 2005

Coisas sérias

Não é por nada, mas o João César das Neves é daquelas criaturas que, quando decide ser "inteligente", mais valia estar quieto.
Por vezes, tem um sentido de humor interessante, mas infelizmente tem uns tiques neoliberais e economicistas que podia guardar num sítio bem recôndito.
De acordo com o homem, a crise que vivemos é "mole" (deve ser um novo termo técnico) e por isso quem se queixa, diz ele «são os que não sofrem a crise, mas os que têm os rendimentos imunes aos efeitos dela. O que se ouve são funcionários, militares, professores, enfermeiros a gritar a indignação (...) Ao ouvi-los, parece que vão perder o emprego, passar fome, viver em bairros de lata. Mas a discussão é à volta de pormenores nas regalias e detalhes nas benesses. A retórica é de angústia; e a realidade é de privilégio.» (DN da passada 2ª feira, p.8)
Este tipo de declarações, vindas de quem vêm, dão-me um certo vómito !
Porquê ?
Porque esta aberração em forma de gente acha que aquilo que em outros países é uma parte importante de uma classe média essencial para suportar o desenvolvimento económico, através de padrões de consumo um pouco mais elevados do que as "massas", digamos assim, por cá não passam de uns malandros privilegiados.
Para ele, não chega o velho e clássico "proletariado" andar pelas ruas da amargura com a actual crise, é necessário que estejam todos de tanga e com o emprego na corda bamba, para ser uma crise a sério.
O que este senhor parece não perceber é que, devido ao trabalho precário e ao aumento do desemprego, os mais desfavorecidos já estão no fundo do poço e que, dando crédito às suas teorias, só se tiverem a companhia dos que lhes estão imediatamente acima é que a crise é "dura".
Mas não deixa de ser sintomático que ele não mencione os médicos, advogados e juízes (todos eles também em maiores ou menores bolandas) na sua diatribe, provavelmente porque os achará mais dignos de consideração social e menos merecedores da dureza da crise.
O problema destas análises feitas "do alto" é a sobranceria com que se olham centenas de milhares de pessoas como meros números e estatísticas e como se menospreza a dignidade social de grupos profissionais inteiros, que desempenham funções essenciais para que a sociedade exista tal como está.
César das Neves parece um candidato a futuro Ministro das Finanças de Sócrates porque a cartilha de "combate aos privilégios" já a tem toda. Só não deixa de ser curioso que estes chamados "privilégios" (idade de reforma, por exemplo, ou algumas regalias sociais de certos grupos profissionais de "risco") tenham sido conseguidos há pouco mais de uma dúzia de anos e já estejam a ser retirados.
Ou seja, entre nós, o Estado-Providência quase não chegou a existir e, em termos sociais, alguns acham que boa parte daquilo que já é uma mirrada classe média deve voltar para uma situação de proletarização forçada.
Estamos bem entregues a estes economistas, estamos.

AV1

Sem comentários: