terça-feira, dezembro 13, 2005

Estado de alma

Ainda sobre questões educativas, deixamos aqui o testemunho da leitora que nos enviou a réplica anterior:

«Estou triste!
Terei como resposta, nestes tempos de olhar por si, “e eu com isso?” e nem irão continuar a ler este texto. Resta-me a esperança dos curiosos para continuar a leitura, agradeço-lhes…
Estou triste…
Ao longo de uma vida profissional de duas décadas e meia, pela primeira vez, sinto um nó no estômago quando tenho que ir trabalhar, dói-me a alma de tristeza...
A escola é um local atípico de laboração, sobrevive ao longo das mudanças, externas e impostas, através das capacidades de criatividade, compreensão, solidariedade e respeito mútuo de quem nelas permanece ao longo das horas, dos dias, dos anos, das décadas….
A “escola-edificio” sobrevive com acções de construção civil, por vezes de obras-remendos, que prolongam a agonia do vazio da funcionalidade, da falta de ergonomia do seu mobiliário…
A “escola-movimento” sobrevive com as cíclicas inovações da juventude que, na sua irreverência, alimentam as memórias dos mais velhos, fazem sorrir as mentalidades e nos aumentam a capacidade de tolerância…
A “escola-aprendizagem”, essa, está difamada.
Vive, nos últimos tempos, à mercê de “entendidos” que expressam a sua opinião, persistente e subtilmente, dizendo o que se deve fazer, sem nunca terem, de uma forma responsável ou científica, analisado o que lá se passa, repetindo de uma forma acrítica aquilo que ouviram a quem ouviu de alguém que lhe contou….
A “escola-aprendizagem” vive de afectos, de vontades, do exercício da cidadania, da postura do brio profissional. São precisamente os afectos, as vontades, o exercício da cidadania e o brio profissional que se encontram difamados. São vilipendiados por casos isolados mas divulgados à exaustão e usados para generalizações…
A “escola-local-de vida” representa essa mesma vida. Pode ser violenta, estar abaixo dos níveis da pobreza, passar fome, manifestar um total desinteresse pelo que a rodeia, apresentar uma imensa influência da sociedade do consumo….
A “escola-isto-tudo” tem que implementar medidas, sem operacionalidade real, sem prever as consequências, sem meditar a longo prazo, fundamentando-se em níveis de popularidade necessários à sobrevivência de um todo que governa distante num gabinete com ambiente controlado até na temperatura….
Como profissional de todas estas “escolas”, estou triste, estou de luto na alma… Não tenho grande disponibilidade para os afectos, para a criatividade, para o exercício da cidadania, para o brio profissional….
Porém, é precisamente nestes tempos que correm que tenho, que devo, aprumar-me e demonstrar que estou aqui e sobreviverei, não abdicando nunca de defender a minha profissionalidade (em vinte e cinco anos de serviço, quantas equipas ministeriais já vi “desfilar”?!.....Quantos verei ainda até aos quarenta e três anos de serviço??....)
Na minha formação inicial ensinaram-me a consultar e ter a legislação, ensinamento que sempre segui, com esta postura de cidadania conquistei alguns “menos amigos”, mas sempre pensei por mim e nunca me coibi de ter opinião, fundamentando-me na legislação.
Pela primeira vez em vinte e cinco anos de serviço, assisto a uma equipa ministerial que se acha acima da lei, que pensa que a pode ultrapassar!
No quotidiano profissional tenho assistido à disfuncionalidade familiar, aos problemas económicos a reflectirem-se nas dificuldades de aprendizagem, à perda dos valores de solidariedade, ao abdicar do exercício da cidadania, mas nunca me vi confrontada com uma postura em que, quem deveria respeitar a lei acima de tudo, faz dela “tábua rasa”…
Estou triste, estou de luto nos afectos, amanhã, quando estiver no meu local de trabalho com posso mencionar democracia? Como posso apelar à tolerância? Como posso falar de formação cívica?
Tolerei “devaneios” da política educativa ao longo de vinte e cinco anos de serviço, não perdoo o facto de, neste ano lectivo, ir trabalhar sem alegria, sem disponibilidade para estar….»
Filomena Ventura

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