quinta-feira, dezembro 15, 2005

A Ignorância !



A ignorância pode ser lamentável, mas inevitável por força das circunstâncias, mas quando é revelada em doses cavalares por quem tem ou uma área de especialidade ou responsabilidade política e/ou técnica sobre determinados aspectos da nossa vida é profundamente triste e continua a ser lamentável.
Vem isto a propósito da notícia de capa do Jornal da Moita de hoje em que se revela, de novo, o óbvio sobre o que se passou há mais de um ano em Alhos Vedros por ocasião e na sequência da demolição do que restava da antiga cadeia municipal da vila.
Vamos por partes e, apenas com base na notícia da autoria de Marta Luísa Silva, façamos um apanhado da ignorância, asnice ou mera má-fé recorrente dos envolvidos no projecto, excepção feita ao proprietário privado que, claro, se limitou a lucrar com o sucedido e beneficiando da activa inacção dos poderes públicos.
Ora bem: parece que um ano foi o tempo necessário para os arqueólogos de serviço (que não conheço pessoalmente, nem de ouvir falar na obra, pois não sou dessa área de trabalho) e a sua equipa produzirem um relatório "aprovado pelo Instituto Português de Arqueologia".
Até aqui, nada de especial: a demora é habitual nestes casos e a chancela do IPA é equivalente à de muitos serviços centrais que são assinados de cruz por um qualquer funcionário que desconhece do que se trata em concreto.
Em seguida, fica-se a saber que, apesar das evidências, as sondagens iniciais se destinavam apenas a "obter dados de carácter geológico e pedológico", o que significa que na CMM ninguém com responsabilidades tinha a mínima ponta de ideia do que aquele edifício representava e quais as suas origens.
Nada de espantar, de novo.
Depois, ficamos a saber, algumas conclusões do dito relatório que não conheço no todo, mas cujas partes divulgadas são risíveis mesmo para um não arqueólogo que apenas espreitou o buraco então feito.
Ora apreciemos o brilhante relatório (ou as declarações dos responsáveis ao JM) sobre:

a) A possibilidade de ali existirem vestígios de uns antigos Paços do Concelho: "Não seria muito lógico visto que o pelourinho está a cerca de 100 metros mais para sul, na mesma rua e, como é habitual, em outras sedes de município, este licaliza-se frente aos paços do concelho".

b) Que tipo de estrutura(s) ali se encontrava(m) nos diversos níveis arqueológicos: "Na parte superior tínhamos, sem dúvida, uma caleira para abastecimento de água para rega do pequeno quintal que existia ali antes das recentes obras. Mais tarde soubemos que existia um poço de onde provinha a caleira"; outra passagem: "O piso de argamassa de superfície encrespada, poderia ser um piso datado do século XVI, assim se pode deduzir pelos escassos materiais cerâmicos recolhidos [e] a forma enrugada da argamassa, com uma ligeira inclinação para sul, pode levar a pensar que serviria, possivelmente, para uma melhor drenagem".

c) Destino do espólio recolhido: está na posse dos arqueólogos de serviço até a CMM "possuir um local para depósito dos materiais arqueológicos".

Tudo isto junto só não me provoca uma síncope porque o meu cardiologista me disse que eu tenho um coração forte.
A trapalhada é tanta que é diícil escolher a ponta por onde pegar. Mas tentemos, por caridade:

a) Embora ache que os Paços do Concelho não terão ficado ali durante a maior parte da vida municipal de Alhos Vedros, a justificação dada pelo(s) especialista(s) é risível, pois não contempla a possibilidade dos ditos Paços terem mudado de localização ao longo do tempo. É óbvio que quando o pelourinho é erguido, o actual Largo que o envolve devia ser a zona nobre da vila, onde se veio a instalar a própria Misericórdia. Seria natural que os Paços do Concelho lhe fossem quase fronteiros na zona onde já se encontraram vestígios de construções quinhentistas.
Mas nada impede que antes ou depois disso a sede municipal tivesse estado em outro ponto da mesma artéria da vila, que seria a tradicional Rua Direita. Claro que num relatório a sério, o levantamento arqueológico deve ser completado com pesquisa arquivística condizente (e como ainda não o vi, não sei se ela foi feita), mas parece-me que ninguém terá passado os olhos pelos livros da vereação de Alhos Vedros, para tentar encontrar pistas sobre o local de reunião das mesmas ao longo do tempo, em especial porque os livros que restam começam no século XVII, data apontada para a origem da "cadeia", o que seria obra que necessariamente seria tratada em reunião de vereação, mas pronto, acredito que para arqueólogos seja complicado manusear outras fontes que não meros calhaus e cacos.
Mas, para além disso, gostaria de saber onde, no distrito de Setúbal, encontram provada a relação directa entre a localização do Pelourinho manuelino (ou medieval) e dos Paços do Concelho. Mas, enfim...

b) A explicação feita sobre o tipo de estruturas pré-existentes à "cadeia" é do tipo feita a olhómetro, sem qualquer tipo de linguagem que revele conhecimento concreto do que foi escavado. Fica-se a saber que foi achada uma caleira e que existia um quintal, algo que qualquer alma da terra, mesmo analfabeta, conseguiria perceber só de olhar. Depois, souberam da existência de um poço. Como é que o souberam ? Alguém lhes disse ? Encontraram vestígios ? O quê ? E o piso de "argamassa de superfície encrepada" era o quê ? O tecto de algo inferior, onde se construiu algo em cima ? O tipo de cerâmica encontrada (fala-se mesmo em holandesa) não indicará com clareza que ali era uma casa pouco comum e de alguém com meios acima da média ? Alguma pesquisa arquivística sobre isso ? Não se sabe.

c) É inacreditável que o espólio fique à guarda da equipa, sem qualquer controlo, apenas porque a CMM, ao fim de 30 anos de poder democrático, não teve ainda a presciência de arranjar um depósito em condições para materiais arqueológicos, sabendo-se que Alhos Vedros tem origens medievais. Se calhar é mesmo por isso, porque se fosse um depósito para guardar bosta petrificada de bois tardo-medievais ou renascentistas, já se arranjava espaço. Ficamos assim a saber que os materiais recolhidos nem outros simulacros de campanhas arqueológicas feitas nos anos 80 junto à Igreja Matriz, ou mesmo em outros pontos da rua Cândido dos Reis, andarão por aí ao deus-dará, onde calhar, sem qualquer tipo de estudo complementar ou tentativa de contextualização do que se foi achando ao longo dos tempos.
A completa incúria do poder autárquico neste tipo de assuntos é de sempre e nem a renovação do pessoal político serviu para melhorar o que fosse. A actual dupla dinâmica é, neste aspecto, pior do que os antecederam pois esses talvez fosse possível convencer com falinhas mansas. Estes nem à pedrada percebem o que se lhes diz, de tão convencidos estão da sua Razão absoluta. E isto é uma absoluta vergonha.

Em resumo, muito mais haveria a dizer e escrever sobre estes desmandos repetidos a que o património de Alhos Vedros foi sendo sujeito até ao ponto da quase desaparição.
Os responsáveis pelo sector do Urbanismo ao longo dos anos 90, sendo pelo menos moradores na freguesia de Alhos Vedros (João de Almeida, João Lobo) sempre revelaram uma insensibilidade atroz para este tipo de matérias, quando a sua (in)acção não foi mesmo verdadeiramente classificável de criminosa contra o Património e o Ambiente. Do actual, não vale sequer a pena falar, de tamanha ser a ausência de conhecimentos e preocupações nesta área, se exceptuarmos as palavras ditas em momentos apropriados ou reminiscências cronísticas esquecidas quando ascendeu à vereação.
Não vale a pena esperar nada de quem não tem nada para dar.
A ignorância leva ao desintesse e quando esse desinteresse emana dos responsáveis pelos poderes públicos, os privados só têm a ganhar.
E essa aliança, que sempre aqui temos denunciado, entre desinteresses públicos e interesses privados, se vai esboroando a identidade e a memória da antiga vila de Alhos Vedros, que nem uma placa toponímica sem erros ortográficos consegue ter a anunciá-la.

AV1 (piurso)

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