quarta-feira, dezembro 29, 2004

12 decisões para o Ano Novo

VIII - Como assumir as suas responsabilidades

Há um par de anos, a propósito do êxito de Shaggy com a canção It wasn’t me, Salman Rushdie escreveu umas das poucas coisas que gostei de lhe ler. Foi uma crónica sobre a tendência muito moderna de negar as evidências e de fugir às responsabilidades pelos erros cometidos e asneiras feitas. Escreveu ele então:
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«A negação descarada, a transmissão da mentira em directo, tornou-se – neste tempo de coberturas jornalísticas levadas à exaustão – numa faceta cada vez mais evidente da vida pública. Actualmente, até os maiores monstros do nosso tempo – os criminosos de guerra do Camboja ou da ex-Jugoslávia – se habituaram a negar as suas atrocidades, cientes de que a probabilidade de conseguirem aceder aos meios de comunicação internacional é quase de certeza maior que a probabilidade de um qualquer jornalista conseguir aceder à verdade.» (S. Rushdie, “Então quem foi ?” in (livros), Maio de 2001, p. 16)
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Com efeito, em vez do hábito antigo de se assumirem as responsabilidades pelos actos e pelas decisões tomadas (uma coisa que tem a ver com a Ética mais do que com a própria Moral), o pessoal habituou-se, por vergonha de pedir desculpa, por receio de assumirem publicamente os seus falhanços ou por outra razão igualmente inválida, a surgir com desculpas esfarrapadas ou a descarregar a culpa para outros.
É verdade que o exemplo cada vez vem mais de cima.
Todos nos lembramos ainda (espero...) do que se passou com o concurso de professores do ano passado, com toda a gente a atirar as culpas para trás dos ombros, ou mais atrás com a tragédia de Entre-os-Rios, com todos os responsáveis pela falta de fiscalização das pontes a declararem-se irresponsáveis, ou ainda com as mortes de crianças no Aquaparque ou, mais atrás, com a morte dos hemodialisados no Hospital de Évora ou, por essas alturas, com o problema do sangue contaminado com o vírus da Sida. Enfim, os exemplos abundam e só é difícil seleccionar quais os mais ridículos, trágicos ou meramente caricatos, em que pessoas com altas responsabilidades na nossa sociedade se aliviaram das culpas, não assumindo o seu papel em manifestos erros de apreciação e (in)acção.
Mas nem por isso é desculpável que todos nós enveredemos por esse caminho no nosso quotidiano, optando por mentirinhas mal amanhadas de circunstância, sempre que as coisas correm mal. Desde a criancinha que não faz os trabalhos de casa porque preferiu ver televisão e depois se desculpa com o que lhe vem à cabeça, ao construtor civil que faz as maiores aldrabices para poupar uns tostões e depois culpa o pedreiro caboverdiano ou ucraniano, não esquecendo o senhor doutor que diagnostica mal uma doença com graves consequências para o paciente e depois alega que os exames é que foram mal feitos ou o jogador de futebol pago aos milhares por mês que diz que só falha quem lá está dentro, como se não fosse pago para fazer bem feito o seu ofício ou ainda o árbitro que se desculpa com o fiscal de linha e este com o nevoeiro ou com uma mosca que ia a passar
É triste, mas é verdade, nos tempos que correm todos se acham inimputáveis e, pior que isso, cada vez recorrem mais à mentira esfarrapada para se tentarem safar. Pois, porque até a mentir cada vez há mais incompetência. Já não há mentiras como antigamente.Agora é difícil encontrarmos algo mais do que o "grau zero" da mentira - o "não fui eu !", o "não estava lá !", o "não sei do que fala !" ou o mero e indignado "isso é mentira !!".Nunca os desmentidos foram tão pobres como agora, com razão ou sem ela.A mentira já foi uma arte (veja-se a propósito o que escreveu Oscar Wilde), agora é um mecanismo automático.A mentira já exigiu imaginação, sofisticação. Agora está reduzida à negação mais rasteira.A mentira já foi, e não tão invulgarmente, melhor do que a verdade.Agora é tão má como a própria verdade.
Meus senhores e minhas senhoras, por uma vez, assumam os vossos actos.
Se os fizeram com convicção, não se envergonhem disso. Se acham que, apesar de tudo, erraram, peçam desculpa, assumam as vossas responsabilidades.
Não transformem o nosso mundo num viveiro de cobardes e inimputáveis auto-proclamados, incapazes de resistir à vergonha do erro porque o maior fracasso é não saber assumir o erro e seguir em frente, aprendendo com as nossas falhas.
Esta talvez fosse a mais importante decisão a tomar para qualquer Novo Ano.

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