domingo, fevereiro 05, 2006
Não há almoços grátis
Ainda a propósito das ideias, contrario senso, do James Carville sobre o interesse do Estado financiar os gostos e humores dos políticos para que não sejam tão vulneráveis à corrupção, lembrei-me de um daqueles estudos que quando são lidos em jovem nos deixam sempre marcadauma profunda impressão. Foi o caso do Essai sur le don do Marcel Mauss que li em belas fotocópias meio esborratadas, em meados da década de 80 ou antes, a chegar aos 20 aninhos, por qualquer razão que não me escapa, mas que não vos interessa aqui para nada.
Apenas interessa que recentemente adquiri a edição inglesa a preço de alfarrabista civilizado e que a teoria básica do ensaio que passa pela constatação de, em grande número de sociedades ditas "primitivas" a ideia de "caridade" ou de ajuda material puramente altruísta ser algo estranho, sendo que as "oferendas" nunca são desinteressadas e implicam muitas vezes um complexo jogo de equilíbrios sociais, em que quem recebe deve retribuir de alguma forma o que lhe foi dado.
No caso das oferendas com carácter religiosos, a retribuição pretendida é óbvia e faz parte do próprio sistema de crenças e da relação de reciprocidade estabelecida com o divino.
No caso das oferendas com cariz político, também as retribuições são evidentes, pois o súbdito que oferece ao seu suserano espera algo em troca, mais que não seja protecção, enquanto o suserano ao retribuir com essa protecção ou algo mais espera que o retorno se faça em termos de serviço e fidelidade (é toda a base do sistema feudal).
Por fim, no caso de oferendas de carácter aparentemente apenas social, está em causa a honra dos envolvidos, sabendo quem recebe que deve retribuir pois, caso contrário, é a sua dignidade social que está em jogo.
Embora esta não seja uma teoria global que explique todo o sistema de troca de "ofertas" que existiu e existe nas sociedades humanas, é muito útil para compreendermos que certas simpatias ou favores que se fazem e recebem em certos quotidianos não são desinteressadas e esperam retribuição.
E, retomando Carville, na esfera da vida pública, muitas vezes a retribuição devida é bem mais onerosa para o bem comum do que o valor da oferta dada, mais que não seja porque a primeira oferta pode ser feita apenas um indivíduo ou um pequeno grupo de indivíduos, enquanto a retribuição pode ser feita à custa de toda a comunidade.
O fiscal ou agente da autoridade que aceita um lanche ou almoço grátis, sabe certamente que o equilíbrio só será reposto quando retribuir de algum modo esse favor, seja fazendo vista grossa ao incumprimento dos regulamentos ou não autuando quem prevarica.
O agente político que aceita uns dias de férias aqui ou acolá, uma substancial atençãozinha na prestação de um serviço ou mesmo uma simpática prenda para algum familiar, sabe que mais tarde ou mais cedo se verá na obrigação quase "moral" de retribuir o favor recebido, mesmo que não solicitado.
Aliás, não é por acaso que Marcel Mauss, para além da antropologia, parece ter sido particularmente atraído pela análsie de certos fenómenos políticos.
É que as coisas não são assim tão diferentes, pois a natureza humana e das relações humanas não varia assim tanto.
AV1
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