Carro - para o verdadeiro moiteiro encartado o seu veículo automóvel é uma segunda natureza, a sua verdadeira cara-metade, aquilo que ele ama mais do que a própria família, o seu ai-jesus se lhe fazem um risco na chaparia. O que é estranho, atendendo à frequência com que se espetam em acidentes mais ou menos estapafúrdios. Mas é verdade, o moiteiro adora o seu carrinho, seja um bom e velho Uno ou seja um espada todo turbo-diesel, cheio de extras, mesmo que isso faça com que a família só possa comer salada de atum com batata e duas gotas de azeite no resto do mês, para pagar a prestação. É uma segunda pele que só não se leva para a mesa do café, porque o carro tem dificuldade em sentar-se nas cadeiras. Se for numa esplanada, o moiteiro deixa-o ali à beirinha, à babuge, mesmo em cima do passeio, se possível atravessado a ocupar dois lugares, que é para o coitadinho não sentir claustrofobia. Se vai à Caixa, o moiteiro leva o seu carrinho até à porta da dita, espreita por um lugar vago, mas mesmo havendo-o estaciona em cima do passeio se a manobra se afigura de algum esforço. Se vai às Finanças a seguir, não vai a pé. Volta ao carro e avança estacionando à sombrinha, mesmo frente à entrada, a menos que outro moiteiro já lá tenha chegado antes. Nesse caso protesta. Se vai ao Modelo ou encosta o carro mesmo ao supermercado, na faixa destinada ao trânsito ou ocupa um lugar de deficientes que é o que fica mais próximo e sempre tem a sua lógica. Se vai à Praça, na falta de espaço ou passeio, deixa-o em segunda fila. Se é a mulher que vai buscar as couves, fica com o carro de porta aberta para o lado do trânsito, a falar com o Manél que está do outro lado da rua e grita com o mesmo empenho que ele para se fazerem ouvir por toda a vizinhança. O mesmo método serve para quando se lembra de procurar qualquer coisa no carro: abre sempre, mas sempre, a porta do lado da faixa de rodagem, e nunca a do lado oposto, espeta a cornadura para dentro do automóbil e o traseiro para todos apreciarem, na esperança de ser corneado. Em casa, mesmo que tenha garagem, estaciona do lado de fora, porque transformou a garagem em sala de visitas ou em oficina para biscates. Em plena estrada nunca usa os piscas, para não gastar o sistema eléctrico, e nunca muda de velocidade, havendo duas variantes neste caso: os mais novos, de sangue no toutiço, que só sabem andar sempre em quinta mesmo se o semáforo está vermelho no cruzamento do Juncalinho ou se os outros têm prioridade na rotunda da BP e os mais velhos, que só andam em 3ª e na faixa da esquerda em pleno IC32, que é para a deslocação de ar não levar o capachinho ou os cabelinhos atravessados sobrea careca e colados com cuspo na falta de margarina. Mas há que admiti-lo, a relação do moiteiro com o seu carro é das coisas mais românticas e comoventes desde os tempos ancestrais em que o homem inventou a roda, é algo só equiparável à paixão entre Tristão e Isolda e Abelardo e Heloísa, só não sabendo no caso desta analogia quem é o macho que ficou com a masculinidade amputada, pois o moiteiro tende a comportar-se de forma algo efeminada quando assacode a poeira do capô com o lenço, assim com um movimento de pulso que coiso e tal.
Arnestino Bibliófilo (observador dos hábitos locais nas horas vagarosas e praticante do carspotting)
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