quinta-feira, fevereiro 03, 2005

Polémica II

A propósito de religião

Aparentemente, o post mais polémico que inserimos em 15 meses foi o de ontem sobre a saúde do Papa, provocando reacções diversas e bem acesas.
É verdade que aqui no blog ninguém é católico, mas alguns leitores são-no e merecem todo o nosso respeito, a par dos luteranos, anglicanos, muçulmanos, budistas, xintoístas, judeus, hindus, hare-krishnas e demais crentes. No entanto, as nossas convicções sobre alguns temas podem chocar a sensibilidade deste ou daquele que tem todo o direito de reagir de acordo com as suas convicções.
Por isso, e para que não se pense que aquele post entrou só numa de gozo, convém aprofundar aqui um pouco uma ou duas das questões em discussão, sobre religião e catolicismo, em geral, e sobre o Papa em exercício, em particular, após digressão introdutória.
Sem desprimor para o próprio, mais do que a Titta Maurício, esta resposta destina-se ao AL, porque nos conhecemos há mais de 20 anos, porque trabalhámos em conjunto boa parte desse tempo e porque só discutimos em facções opostas seriamente a propósito de futebol, pois ele é adepto do clube gerido actualmente pela parceria Duplo V, a que num triste momento (estava toldado pela gripe) Dias da Cunha decidiu dar a mão.
Mas voltando às metafísicas.
Detalhes pessoais, que o AL conhece bem: não sou adepto de nenhuma fé (religiosa, política, etc), nem milito em nenhuma organização (nem o SCP !!!). Fui sondado por algumas, incluindo as “Obras”, com e sem avental, mas por um dever de honestidade, não aderi a nenhuma por manifesta falta de convicção e porque não considero ser a conveniência um critério aceitável. Existiriam vantagens materiais, mais do que espirituais, em tal adesão, mas volto a dizer que isso para mim não é critério pois, por essa ordem de ideias, tinha entrado para uma “jota” qualquer a gosto, em seu devido tempo.
Sei que obreiros e pedreiros travam uma luta surda, um jogo oculto de xadrez, pela colocação das suas peças (peões, cavalos, torres e demais) em posições-chave dos vários tabuleiros em que se movem (nacional, europeu, mundial) e que usam métodos que eu não considero os melhores para fazerem vencer não as suas ideias mas a sua posição de poder. Como profundo céptico em relação aos efeitos do poder (político, económico, espiritual) sobre os homens (e mulheres), prefiro distância desses jogos, não me recusando a colaborar pontualmente em iniciativas que considere louváveis de qualquer das partes.
Em matéria religiosa, sou “agnóstico”, no que isso é na sua essência, ou seja, alguém que não conseguiu encontrar uma verdade transcendental que explique o sentido da existência. Considero ser Deus, na acepção mais corrente partilhada pelas religiões monoteístas (e não só) uma imanência criada pelo homem para se proteger da transitoriedade da vida e do desespero que isso pode causar, podendo em última instância assimilar a existência de uma divindade última à própria Natureza, na sua acepção mais lata de entidade a que tudo pertence. Não sei se isto me qualifica para ser considerado um “deísta”.
Quanto à Igreja Católica em particular, para além do seu papel histórico, por vezes discutível, tenho uma posição parecida (salvo as devidas proporções), à que reservo ao Bloco de Esquerda: respeito pelas bases, desconfiança extrema quanto às cúpulas. Acho que no momento actual, ao nível do Vaticano, se encontra dominada por uma oligarquia desligada das realidades e preocupada em perpetuar as suas posições de privilégio, como qualquer outro grupo dominante (mesmo se não partilho todas as teorias da conspiração de obras como O Código Da Vinci e derivados menores). Em contrapartida, salvo uma ou outra excepção, ao nível das bases, sempre consegui estabelecer boas relações com padres e fiéis. Sou casado pela Igreja (não fui baptizado para o efeito, pois o padre, para além de sportinguista ou por isso mesmo, tinha bom senso) e já fui cinco vezes padrinho (duas de casórios e três de baptismo, embora aqui com alguns episódios caricatos à mistura), o que parece indicar que a minha imagem não é totalmente escabrosa para, pelo menos, uma dezena de católicos (os noivos e pais das crianças).
Quanto a João Paulo II acho que, mais do que o seu desaparecimento físico que não se deseja a ninguém de ânimo leve, devia dar-se a transmissão do seu poder a um outro Papa que pudesse revitalizar a função de um Santo Padre. João Paulo II já é, justamente ou não, um mito com tudo o que isso tem de vantajoso e pernicioso, nomeadamente a “prisão” a uma imagem. Mais do que uma atitude de resignação ou de exemplo em favor dos idosos e doentes, ele está refém de um grupo ou facção no seio do Vaticano que o tornou um ícone e que, colocando-se atrás da sua dimensão espiritual e histórica, usa essa estratégia em seu favor, seleccionando criteriosamente as graças a distribuir. As doenças de que sofre João Paulo II são claramente incapacitantes, não apenas do ponto de vista físico mas também intelectual (é talvez desonesto alegar que porventura sou, neste confronto de ideias, o único que tem alguém próximo a sofrer de Parkinson, embora num grau muito menor do que o Papa) e, mesmo com a eventual graça divina de que possa beneficiar, ele é um prisioneiro num labirinto que ajudou a criar e que os seus ajudantes têm todo o interesse em perpetuar até à sua exaustão para, quais eminências púrpuras, serem reis em lugar do rei.
João Paulo II já não vive, é mantido vivo.
João Paulo II já é parte da História e um sinal de lucidez de um grande líder é reconhecê-lo e perceber quando passar o testemunho. Nem todos têm essa sabedoria, coragem ou discernimento (será este o caso) para o fazer, pois o poder cega e quem se encontra em seu redor faz os possíveis por multiplicar a luz que não ajuda à visão, antes a diminuindo.
Nas últimas décadas só me lembro de um grande líder que soube, em cada momento, defender os seus princípios com firmeza, resistir fiel a eles independentemente dos custos pessoais, vencer com respeito pelos adversários e abandonar o poder com dignidade e até humor. Chama-se Nelson Mandela, veste umas camisas horrorosas mas tem um sorriso insubstituível.
Serão estas minhas opiniões erradas, carecendo de informação privilegiada sobre os meandros verdadeiros do Vaticano ? Terei de ir a Roma, para ver o Papa e alcançar a Verdade ?
Talvez. Talvez. Talvez.
Por enquanto, e como se vê, na falta dessa Verdade fico-me por meras dúvidas e simples verdades.

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