Este comentário já estava preparado, mas sai só agora. As citações já estavam incluídas antes dos comentários dos posts anteriores.
Ainda não será agora que poderei desenvolver tudo o que penso sobre o assunto em apreço, mas deixarei aqui três conjuntos de notas, o primeiro sobre alguns aspectos religiosos (por certo, que anedóticos, mas não menos simbólicos), o segundo sobre as questões científicas propriamente ditas que envolvem o que se pode considerar “vida” e “vida humana” e o terceiro, mais breve, sobre a questão filosófica do sofrimento.
Quanto aos aspectos religiosos da argumentação e ao carácter pretensamente humorísticos do meu texto a esse respeito:
Por estranho que pareça, eu não brinco quando falo que os animaizinhos também são criaturas de Deus. Pode parecer caricatura, mas não é. Aliás, penso que lhe não será necessário avivar a memória com citações bíblicas que fundamentam a prioridade da criação de todas as espécies relativamente à humana e, por paradoxal que seja, sendo esta a única que à partida não foi criada com o objectivo de se reproduzir. A questão da reprodução humana, de acordo com o Génesis, é muito ambígua pois se ao sexto dia Deus criou o homem à sua imagem, como macho e fêmea, e o mandou frutificar multiplicar-se, encher e dominar a Terra (Génesis, 1, 21-22), mais adiante afirma-se a posterioridade da criação de Eva (Gn, 2, 22) e, na sequência do episódio mais do que conhecido da serpente e da maçã, a mulher é castigada com as dores do parto e a submissão ao homem por ter desobedecido às indicações divinas (Gn, 3, 16). Numa leitura algo extrema, a reprodução é uma conquista humana, mais concretamente feminina, longamente apresentada como o “pecado original” que toda a espécie está condenada a expiar, etc, etc, pela qual Cristo morreu na cruz, etc, etc. Se a criação do Homem/Mulher foi ou não, do ponto de vista do cristianismo, o ponto mais alto da criação é algo que só o desenvolvimento dos dogmas da religião nos seus primeiros séculos veio tornar mais claro.
Mas isto é tudo lateral e desconfio que mesmo muitos católicos não estejam verdadeiramente preparados para discutir em profundidade estes assuntos (os meus conhecimentos da Bíblia são talvez equivalentes ao dos Capital, ou seja, apanham o essencial e permitem-me fundamentar as minhas críticas ao sistema).
Mas passando a questões de carácter científico, convém desde já avisá-lo, meu caro Titta Maurício, que argumentar com os documentos de uma Conferência de 1967 não é propriamente um modelo de actualidade quanto aos progressos da ciência. Penso que já terão existido um par de iniciativas depois dessa e que se terá dado um ou outro avanço nos nossos conhecimentos.
A este respeito vou-lhe deixar aqui alguns testemunhos, algo generalistas e não motivados pela temática do aborto, sobre o que é a vida, a unidade dos organismos vivos, o sentido da espécie humana, a transitoriedade das certezas, etc, etc, que se devem a cientistas de renome que encontrei na prateleira da minha estante dedicada à divulgação científica.
Não posso deixar de recomendar, embora menos actuais, duas obras clássicas sobre o que é a vida e os seus fundamentos: O Acaso e a Necessidade de Jacques Monod (havia tradução nas Pub. Europa-América), Le Macroscope de Joel de Rosnay (edição na Points da Seuil)
«O que a fisiologia e a biologia mostraram no decurso deste século [XX] foi, em primeiro lugar, a unidade de composição e de funcionamento no mundo vivo. Para além da diversidade de formas e da variedade de realizações, todos os organismos empregam os mesmos materiais para efectuar reacções similares.»
François Jacob, A Lógica da Vida (D. Quixote, 1985, pp 23-24, edição original de 1970, o sr. foi Prémio Nobel em 1965 com J. Monod e A. Zwoff devido a trabalhos sobre o ADN)
«Os moralistas e teólogos dão grande ênfase ao momento da concepção, considerando-o como o instante em que a alma inicia a sua existência. Se, como eu, não fica comovido com tal discurso, tem, no entanto, de considerar este instante específico, nove meses antes do nascimento, como o mais decisivo do seu destino. (...) Naturalmente, o ser embriónico que surge tem ainda de ultrapassar muitos obstáculos. A maior parte dos óvulos termina em aborto prematuro, antes mesmo que a mãe saiba da sua existência, e nós temos todos sorte de não nos ter acontecido o mesmo.»
Richard Dawkins, Decompondo o Arco-Íris (Gradiva, 2000, ed. original de 1998, pp. 17-18)
«A vida é uma coisa traiçoeira de definir, mas consiste em duas capacidades bem distintas: a capacidade de se replicar e a capacidade de criar ordem.»
Matt Ridley, Genoma (Gradiva, 2001, ed. orig. 1999, p. 20)
«Apesar do papa, a espécie humana não é de modo algum o apogeu da criação. A evolução não tem um apogeu e uma coisa como progresso evolutivo não existe. A selecção natural é apenas o processo através do qual as formas vivas se transformam para se ajustarem à miríade de oportunidades fornecidas pelo ambiente físico e pelas outras formas vivas. (...) É claro que os seres humanos são únicos. Têm a máquina biológica mais complicada do planeta empoleirada entre as orelhas. Mas a complexidade não é tudo e não é o objectivo da evolução. Todas as espécies do planeta são únicas.»
Idem, pp. 32-33
«Se sabemos que não temos a certeza, temos a possibilidade de melhorar a situação. (...) A dúvida é claramente um valor em ciência. Se o é também noutros campos, é uma questão em aberto e uma matéria incerta.»
Richard Feynman, O Significado de Tudo (Gradiva, 2001, textos originais de 1963, p. 37)
«Nenhum governo tem o direito de decidir sobre a verdade dos princípios científicos nem de prescrever de algum modo o carácter das questões a investigar. (...) Em vez disso, tem para com os cidadãos o dever de manter a liberdade, de deixar os cidadãos contribuírem para a continuação da aventura e do desenvolvimento da raça humana.»
Idem, p. 65.
Quanto à capacidade de sofrimento, penso que esta é uma questão incrível porque, por estranho que pareça, nunca ninguém a coloca. Para mim, pelo contrário, é fundamental e é uma das que levanta problemas morais e éticos mais relevantes. Porque, para mim, é essencial saber os efeitos dos nossos actos no feto e no sofrimento que lhe é causado. E para isso, preciso de saber a que ritmo se desenvolve o sistema nervoso central do feto, que fases atravessa, o que sente, quando e como.
Só depois da resposta a estas questões me sentirei devidamente informado para definir prazos e todas as condições para a IVG ou aborto, conforme lhe queiramos chamar. E sobre isto, as certezas não existem, quanto muito dispomos de respostas provisórias.
Ensinamentos a recolher de tudo isto: duvidar de respostas feitas apresentadas como absolutas, busca de informação, tolerância para com a a diferença, atenção à especificidade de cada situação/contexto, argumentação baseada em factos enão em crenças, busca de soluções equilibradas.
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