Memórias de outros tempos (1947)
Alhos Vedros nem sempre viveu na pasmaceira em que se tornou.
A história de Eláudio Tarouca fez-me recordar outra “estória” que me contaram sobre as gentes de Alhos Vedros de há muitas décadas.
As gerações mais antigas passaram por tempos certamente mais difíceis que os nossos, mas nem por isso perdiam o ânimo para comemorar o que verdadeiramente interessava, independentemente das consequências.
O episódio que em seguida passo a descrever, foi-me contado por alguém que viveu a maior parte do século XX na vila e aí testemunhou como se viveram em Alhos Vedros alguns dos momentos marcantes dessa centúria. Os detalhes, por vezes, podem escassear mas o essencial permanece.
Estávamos em 1947, quando a Segunda Guerra Mundial ainda há pouco terminara.
Um pouco por todo o lado, alguma alegria tomava o lugar do desânimo que dominara os anos anteriores.
Entre nós, acreditava-se que a vitrória das democracias ocidentais levaria a uma inevitável transformação ou substituição do regime vigente em Portugal.
Acreditava-se numa possibilidade de Liberdade política, de opinião e da sua expressão.
A esperança não tardaria a desaparecer com tudo o que envolveu a tentativa do MUD e do General Norton de Matos irem a votos mas essa é outra estória da História
A estória que aqui trago passou-se quando, com a desculpa comemorarem o segundo aniversário do fim da guerra, um grupo de alhosvedrenses decidiu organizar uma marcha até ao Barreiro.
Lá se fez a coisa, com homens, mulheres e crianças, alguns e algumas pensando que iam para uma festa, com bandeiras dos países vencedores da guerra, incluindo a da União Soviética e outras bandeiras vermelhas, mas claro que estas enroladas para não darem nas vistas. A marcha seguiu atravessando lentamente mas com entusiasmo o descampado com duas ou trêss casotas que hoje conhecemos como Baixa da Banheira.
Os informadores – os conhecidos “bufos” – da região eram conhecidos, mas isso não pareceu atemorizar os entusiasmados manifestantes. No entanto, aqueles fizeram o seu trabalho e contactaram a GNR do Barreiro que decidiram não intervir imediatamente no evento mas ver no que dava a coisa.
A certa altura, com a tarde a avançar, os espíritos animaram-se e aos gritos de “Viva a Inglaterra”, “Viva a América” e “Viva a França”, o pé começou a deslizar e saíram uns vivas à “Rússia” ou “União Soviética”. No entanto, socorrendo-se do seu bom senso, os organizadoires da marcha decidiram não avançar até ao Barreiro e fizeram marcha atrás junto do cemitério do Lavradio, avisados de que algo se estaria a preparar.
Foi então que, com a marcha de regresso e já cansada, os GNR decidiram avançar pela estrada do Barreiro apanhando toda a gente junto ao “Forno da Cal”, entre a linha de caminho de ferro, as salinas e os muros das fábricas que aí existiam.
Diz quem levou, que foi o fartote de distribuir cacetada entre o pessoal em debandada, com destaque para um dos tenentes que comandava os atacantes.
Quem foi mais lesto escapou por onde conseguiu, fossem buracos nos muros da fábrica, pelo meio da água ou fugindo para o outro lado da linha férrea, até que a fúria amainasse.
No centro da vila, quem lá tinha ficado ia sabendo do que se passava pelos que iam chegando com mais ou menos vergões no lombo, nas pernas e nos braços ou com a cabeça a sangrar.
Ao entardecer estava tudo disperso, menos quem no centro de Alhos Vedros esperava pelos seus, resistindo às ordens policiais para recolher a casa. Ocupada até à noite Alhos Vedros viveu horas de expectativa para saber o que se tinha passado com quem faltava chegar.
Quem me contou isto diz que só voltou alta noite depois de escapar a uns bons pontapés do dito tenente quando tentou, com ar de não ser nada com ele, dizer que tinha ido “à festa”.
Nos dias seguintes, cada um dos intervenientes tinha muito para contar, acrescentando os mais imaginativos todo o tipo de peripécias mais ou menos mirabolantes a um acontecimento que, já de si, tinha muito que se lhe dissesse.
Outros tempos, outras aventuras, outras emoções, outra fibra nos de Alhos Vedros.
António da Costa, Outubro de 2004
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