sábado, outubro 16, 2004

Especial 1º aniversário - Memórias de Alhos Vedros II

Atendendo à simpatia com que divulgaram um texto meu sobre o Estado da Educação em Portugal, venho desta forma corresponder ao pedido que me foi feito pela equipa do Alhos Vedros ao Poder para colaborar na comemoração do seu 1º aniversário.
Afazeres profissionais não me permitem produzir um texto original sobre as minhas memórias alhosvedrenses.
Em sua substituição envio um texto feito em finais de 1989, salvo erra, para publicação num dos primeiros número do Boletim da CACAV. O Raminhos ou o Manuel João Croca saberão mais exactamente em que número e data, pois não possuo nenhum exemplar da publicação.
À data, a construção do Centro Cultural José Afonso e a expansão da Helly-Hansen na rua onde vivia levaram-me a reflectir sobre a ideia de desenvolvimento existente no concelho. Felizmente já usava um PC Schneider já na altura e como guardo religiosamente as disquetes de então, ainda recuperei com o Word o texto feito inicialmente em Works. Quinze anos depois, apenas corrigi gralhas, coloquei acentuação então em falta e acrescentei um subtítulo.



Estórias - Ideias de Progresso

“Meus meninos, há uma coisa a que se chama civilização. É feita de esperanças e de sonhos. É só uma ideia. Não é real [...]. Há depois esta coisa a que se chama progresso. Mas que não progride. Porque à medida que o progresso progride o mundo pode escapar-se.”
Graham Swift, O País das Águas

Talvez seja um desnecessário excesso afirmar que o progresso não leva a parte nenhuma. Talvez seja bem mais importante ter em atenção que ele leva a muitos lados, em muitas e desvairadas direcções, infelizmente nem sempre as melhores, conforme a perspectiva de cada um.
Opôrmo-nos ao “progresso”, independentemente das variadíssimas facetas e cambiante que tal conceito abriga, é empenharmo-nos numa empresa voluntariamente fadada ao insucesso. Ele é algo de inevitável, de tão incontornável como o escorrer do próprio tempo, ao longo do qual tudo o que tem a sua existência, viva ou inanimada, se transforma.
Com maior ou menor velocidade, mais ou menos notória e quase independentemente da vontade daqueles ou daquilo sobre que(m) age.
Talvez a definição mais simples (e, no fundo, mais verdadeira) de “progresso” consista, apenas, na natural transformação de tudo o que existe no espaço, ao longo do tempo, desde a escala local à planetária. No sentido da simplificação ou da sofisticação e consistindo em aparente retornos a padrões do passado ou em avanços para caminhos ainda inexplorados, ele não pode ser parado. Com o tempo, o progresso acontece, porventura por ciclos, mas de forma sempre contínua. Nós apenas podelos modelar, no que estiver ao nosso parco alcance, o seu decurso, de maneira a dar-lhe um aspecto mais consentâneo com a nossa concepção (que, é necessário admiti-lo, nunca poderá ser a única válida) do que consideramos ser melhor.
Partindo do princípio (raras vezes abertamente contestado) de que nenhuma concepção do “progresso” tem legitimidade para se impôr, sem discussão, sobre todas as outras apenas porque é a dos detentores do poder político e/ou económico, vem-se aqui, após todos estes rodeios, abordar muito levemente alguns dos aspectos que nos últimos tempos têm marcado o “progresso” em Alhos Vedros, nomeadamente aquilo que mais nos (como dizê-lo de forma mais sensível) entra pelos olhos dentro.
Ou seja, falar daquilo que se costuma construir com o objectivo declarado de viverem lá pessoas ou aí trabalharem (ao que vulgarmente chamamos, casas, prédios, blocos de apartamentos, fábricas, etc, mas que no caso presente podemos perfeitamente substituir pelas designações bem mais expressivas de “caixotes” e “barracões”). Assim como da sua distribuição no espaço (o que se espera que resulte em ruas, travessas, cruzamentos...), do seu enquadramento com a paisagem, natural ou arquitectónica, já existente (o que se revela de extrema dificuldade pela sua inacessibilidade a espíritos menos elevados e esclarecidos, como o é o deste escriba) e, finalmente, do conjunto final resultante da conjugação urbanística de tudo isto no que, a priori, seria suposto ser uma unidade orgânica, lógica e funcional. Confesse-se, a partir de já, que coordenar ideias coerentes e lógicas quando o seu objecto é delas completamente destituído (a menos que se encontrem a um nível profundo, MUITO profundo) é tarefa árdua e ingloriamente ingrata.
Vejamos, por exemplo, o caso dos “caixotes” e “barracões”: qualquer alma é obrigada a admitir que a maioria de bom aspecto, nem a intenção têm. Prédios, fábricas ou centros culturais, não passam de um aglomerado de paredes, toscas e feias, onde não assoma o mínimo laivo de ideias de verdadeira arquitectura, a não ser a de diminuição máxima dos custos, e em que é estranha a noção de que a originalidade deve ter uma (não tão dispensável quanto isso) relação com criatividade.
Depois, constatamos que ou estão agrupados aos montinhos sem nenhuma directriz visível na sua arrumação, ou se encontram em locais onde a sua harmonia com o meio envolvente faz lembrar a de um elefante rodeado por um bando de pintaínhos que, aterrorizados, o tomam pela mãe-galinha. A necessidade de enquadramento urbanístico por parte de quem projectou/autorizou a sua construção restringe-se à vaga e difusa ideia de que “enquadramento” deve ter algo a ver com “quadrado” e de que “urbanístico” soa bem, mas como começa por uma das últimas letras do alfabeto, seria preciso ler o dicionário até à letra “u”, o que não é coisa ao alcance de todos, pormuito boa vontade que haja. Quanto ao problema do enquadramento paisagístico é resolvido muito mais facilmente. Como, por regra, se destrói a paisagem para construir, na sua essência, esta é uma falsa questão.
Isto não é excesso de ironia mas, se bem repararmos no surto que se verifica por toda Alhos Vedros, quer como cartões de visita nas suas entradas, quer no seu interior, talvez se esteja é a pecar por moderação pois o vazio de ideias e a enfadonha monotonia do fenómeno é geral e nem se percebe porque nuns lugares toma o nome de “fábrica” e, em outros, de “centro cultural”.
Se em algumas destas construções se produz riqueza, seria de interrogar qual o seu destino principal e em que condições é produzida, se em outras se pretende criar e expôr “cultura” conviria perguntar “quando?” e “o quê?”.
Mentes tacanhas continuam a associar maior mprogresso a mais e mais construções e pessoas em circulação. Isso é tomar a nuvem por Juno. Mesmo nos nossos tempos já se começou a abandonar tal associação de ideias. Já não se pensa apenas em termos de “mais”, de quantidade, pura e simples. Começa-se a dar uma importância fundamental a “melhor”. Mais, sim, mas Melhor. A qualidade do progresso começa a impôr-se como um imperativo inegável. Mesmo em outras zonas do nosso concelho isso é visível. Porquê em Alhos Vedros, tal desnorte no planeamento urbanístico ?
Porque não fazer as coisas um poucochinho melhor e com maior consideração pelas pessoas que delas se vão utilizar ? Porquê encaixotá-las no seu trabalho, no lar, na rua, nos espaços de lazer ? Porquê tão completa ausência de qualquer fio condutor de um pretenso “progresso” que parece esquecer aqueles que deveria servir ? Porquê a inexistência de critérios minimanente perceptíveis, coerentes (o que não quer dizer necessariamente padronizados pela mediocridade) e, já agora, transparentes ? Ninguém tem culpa de não saber fazer mais, mas pelo menos que exista a dignidade de dar a conhecer os seus processos de decisão. No fundo, só apetece perguntar incessantemente o porquê das coisas.
Porquê ? Porquê ? Porquê ?
“Meninos, não deixem de perguntar. Porquê. Não parem com os vossos Porquês, professor ? Embora seja mais difícil quanto mais vezes vocês o perguntarem, embora seja mais inexplicável, mais doloroso e a resposta nunca pareça correcta, nunca tentem fugir a essa pergunta – Porquê ?”
Graham Swift, O País das Águas
Paulo Guinote

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