quinta-feira, outubro 21, 2004

Início do 2º ano

Para assinalar o início do 2º ano da nossa vida iremos inserir aqui a parte mais relevante para o passado de Alhos Vedros do texto de Manuel António Boto sobre as aventuras e desventuras de Eláudio Tarouca de que colocámos imagens do original dactilografado no Alhos Vedros Visual.
O texto que se segue é retirado da obra publicada há um par de anos pelas Edições Ribeirinhas e pela CACAV


A Saga de Elaudo Tarouca
Por:Manuel António Bôto

De Alhos Vedros a Leon 1936.1939
Alhos Vedros – Uma corrente com muitos elos.

Eu vou narrar um episódio que teve início poucos dias antes da guerra civil de Espanha, baseado na vida de um rapaz pobre, pobre de dinheiro, então quase analfabeto, que nasceu e se criou na peque­na vila de Alhos Vedros, localizada na margem esquerda do rio Tejo, vila que fica a cinco quilómetros do Barreiro. Trata-se de um moço que, então, teria uns vinte anos de idade, idade do topa-a-­tudo, filho do regedor da vila, o senhor Tarouca.
Chamava-se o rapaz em questão conhecido de toda a gente de Alhos Vedros, Elaudo Tarouca. A história que vou narrar, parte é tal e qual eu a ouvi da sua boca e mais tarde confirmada por outras pes­soas, rememorando detalhes que aconteceram tal como se enca­deiam os elos de uma corrente. A outra parte, essa, foi-se desen­rolando diante de mim e da qual fui testemunha e, por vezes, até per­sonagem presente em certos detalhes.
Eu o conheci. Era um moço alto, forte, sem ser gordo, olhos vivos, inquietos, brilhantes, daquele brilho mais que reflexo, cheios de uma vivacidade contagiante e quase que para além do normal e, em certos momentos, parecendo até que aureolado por uma lumi­nosidade que o transfigurava. Mãos enormes, todo ele forte de osso e de vontade, uma determinação marcava-o nas expressões faciais, lábios grossos, moço alegre, atitude vitoriosa, corpo firme numa armação óssea assente sobre uns pés marca 40, a determinar um equilíbrio perfeito e correcto do seu corpo.
Alhos Vedros era, aí pelos idos de 1917, era, porque até hoje se modificou muito, uma pequena vila de uns 500 habitantes, a maior parte composta de ferroviários, que todos os dias iam trabalhar nas oficinas gerais dos caminhos de ferro do Sul e Sueste, no Barreiro. Havia também operários corticeiros, muitos mesmo, que movimen­tavam as 8 ou 9 fábricas de cortiça, que ali se tinham concentrado, pelas facilidades do porto fluvial e da estação de caminhos de ferro com que a vila contava. Uma dessas fábricas, a do senhor Hermenegildo Ramos, um alentejano funcionário superior do Monte Pio Geral de Lisboa, era gerida pelo seu pai... e dizia o meu velho, até que com certo orgulho, que tinha nascido e sido criado sobre uma cama feita de pranchas de cortiça. Havia ainda trabalha­dores que mourejavam de sol a sol nas marinhas de sal, havia cam­poneses, dois professores, um médico, uma farmácia, dirigida pelo senhor Ezequiel, uma fábrica de vidros, um forno de cal, três ou qua­tro padarias, um correio, onde todas as manhãs íamos perguntar ao senhor Pedro, ou à sua filha, se tinha chegado alguma carta para nós. Havia ainda uns dois ou três sapateiros, umas quantas lojas e mer­cearias, tudo em estilo pobre e onde todas as compras eram anotadas no rol, para pagar no fim do mês. Havia também muitas, mas muitas mesmo, tabernas, onde se vendia vinhaça... e alguma dela até feita de uva e se jogava cartas, onde, por vezes os ardores do álcool e o jogo de baralho armavam cada desordem, ao ponto do regedor e os seus dois «cabos dordes» terem de intervir a porrete limpo que eram as armas então usadas, para separar os desaguisados contendores de ocasião.
Alhos Vedros tinha ainda uma igreja, até que bem grande e uma misericórdia, as quais quando da implantação da República, em Outubro de 1910, tinham sido fechadas ao culto católico, o único permitido na época. Me recordo bem, aí pelos anos de 1919, 1920, quando todos os santos, o altar-mór, azulejos, vitrais, púlpitos, pias de água benta e todos os paramentos da igreja, que fica mesmo ao lado do pequeno cemitério da vila, foram vendidos em leilão, numa disputa pouco limpa entre católicos e bricabraquistas, a ver quem dava mais, onde, quase sempre, os especuladores das casas de bricabraque levavam a melhor. .. E, assim, o grande casarão da igre­ja paroquial, por ter ficado abandonado, passou a servir para a rapaziada do meu tempo, lá dentro brincar. Os seus grandes sinos, enormes mesmo, só passaram a servir para, no dia da Independência de Portugal, a primeiro de Dezembro de cada ano, tocar a rebate fes­tivo ou para anunciar que alguma fábrica de cortiça de Alhos Vedros estava ardendo, chamando os bombeiros do Barreiro que, quando ali chegavam, só restavam cinzas. Isto acontecia numa época em que quase todas as fábricas da vila arderam. Como a cortiça, nessa época de grande crise, não tinha saída para o estrangeiro... o melhor com­prador era uma fogueira... depois... bem, depois o seguro pagava... não muito satisfeito, mas pagava. Parece-me que, das fábricas da vila, só na que o meu pai era gerente, nunca entrou o tal «senhor Fogueira», comprador por atacado.
(Continua...)

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