domingo, outubro 17, 2004

Especial 1º aniversário - Memórias de Alhos Vedros III

Futebol de Rua

Nunca tive grande jeito para jogar à bola, diga-se desde já. Facto que nunca impediu nenhum puto de jogar desalmadamente à bola em todas as oportunidades que tivesse, da infância à dolescência avançada. São cerda de 10 ou mais anos em que a bola parece ser a principal razão da diversão e da nossa exist~encia, enquanto as raparigas não vão ganhando o seu devido lugar.
À porta de casa, dentro de casa, nas ruas mais próximas ou mais afastadas, na Escola, em qualquer espaço aberto aproveitável, tudo era sítio para chutar a bola, em jogo mais ou menos colectivo, com mais ou menos amigos.
Pelo menos era assim quando cresci em Alhos Vedros nos anos 70 e existiam muitas opções para montar um campo, desde que houvesse a dita bola – e aqui não me limito a uma bola no sentido convencional, porque qualquer garrafa de plástico vazia servia, se mais não aparecesse – um punhado de malta para formar equipas (embora dois ou três já dessem para jogar às “balizas pequenas” ou de “baliza a baliza”), meia dúzia de minutos livres e umas pedras para fazer de postes.
Embora qualquer canto de rua servisse, em Alhos Vedros, entre o pessoal com que me dava, lembro-me de dois espaços principais para as jogatanas mais animadas e de maior dimensão: o largo “da Largada” junto à actual Humberto delgado (antiga Óscar Carmona) e o chamado “Campo das Figueiras”, perto do que agora é a creche Charlot mas então era apenas campo aberto a caminho das “Morçoas” que ainda nem esse nome sabiam ter. Era aqui que se encontravam, por exemplo, as equipas da “vila” e dos arredores.
Eram tardes inteiras de bola, no Verão desde o almoço ao jantar, sem descanso, sem lesões, sem foras-de-jogo, sem descontos de tempo, mesmo se com muita discussão quanto aos limites do jogo (tempo ?, nº de golos ?, quantos ?), às faltas mais ou menos intencionais (do pescoço para baixo era tudo canela da rija) e aos golos, pois os postes e a trave eram virtuais, para além dos pedregulhos que os assinalavam.
Ainda durante a primária, no intervalo da manhã, os jogos eram obrigatoriamente no largo do lado direito da escola (para quem saía do portão) que era ocupado pela classe que lá chegasse primeiro, a menos que os grandalhões da 4ª corressem com toda a gente, a bem ou a mal e ocupassem o território (técnicas do PREC, o que se haveria de fazer). Estes jogos serviam para os mais atinadinhos emporcalharem as batas que às 9 horas tinham chegado imaculadas, enquando os mais experientes e escaldados pelas tareias maternas, as enrolavam cuidadosamente em monte comum atrás das balizas para evitarem maiores males.
Portador de dois portentosos pés esquerdos, mesmo sendo destro, eu ficava sempre para perto do fim no processo de selecção de equipas. Não era o último a ser escolhido, porque havia um ou outro “caixa de óculos”, mas raras vezes ia à frente do penúltimo. Em dias maus, com nº ímpar de candidatos, até podia ser o que ia de brinde para a equipa reconhecidamente mais fraca. Em dias de encontro de estrelas, ficava na assistência e mais nada.
Em campo, quando não tinha o azar de ir para a baliza (havia um ou outro especialista), só tinha autorização para jogar à defesa e não passar da linha imaginária de meio campo, pois fintas só sabia fazê-las a mim mesmo. Já a parar adversários era mais forte e provoquei algumas ateragens memoráveis de avançados menos rápidos a evitarem-me. Era a chamada obstrução involuntária. Mesmo assim era sempre um fartote de correria e transpiração, sem se ver onde se punham os pés as pernas e tudo o resto. Nesse tempo e nessa idade ainda não se tinham inventado as lesões e, a menos que o tipo caísse de cabeça na pedra da baliza ou partisse a perna numa queda, continuava-se a jogar até que se pudesse. Os resultados, claro está, tendiam para os dois dígitos, tipo 13-9, 14-12, caso não se combinasse que acabava aos 10 para dar lugar a outra equipa.
A roupa ficava empapada de suor e poeira (Verão) ou lama (Inverno), mas isso só era relevante à chegada a casa quando nem sempre as mais plausíveis justificações eram aceites com caridade e as consequências se revelavam frequentemente bem dolorosas.
Mas, no dia sequinte, lá estávamos todos de novo.
Quer a “Largada” quer as “Figueiras” (já só sobrevive uma das três originais) desapareceram há muito, na função primeiro e depois no próprio espaço. Um foi sendo ocupado a pouco e pouco por casario, enquanto o outro foi sendo retalhado por ruas e agora serve, de quando em vez, para a instalação de um ou outro circo em digressão.
O que há muito não há são os gritos incessantes de miúdos em correria louca horas a fio sem qualquer outra preocupação que não fosse apanhar a bola e metê-la na baliza adversária. Quer dizer, no meu caso, era mais impedi-lo, mas acho que percebem a ideia.

Filipe Fonseca

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