sexta-feira, outubro 22, 2004

A saga continua - Alhos Vedros nos anos 20

(... continua do post anterior)

Quem puxava as cordas, que faziam badalar os sinos, era o velho Ricardo, um republicano da velha guarda, que pertencia à Junta da Paróquia da vila e que era um reformado, trabalhador carpinteiro dos Caminhos de Ferro. Ainda, e apesar dos tantos anos já passados, me recordo bem com que tristeza o velho Ricardo tocava o sino grande, quando, no tempo da epidemia, no Verão e Outono de 1918, quase durante todo o dia, os mortos, em certos casos famílias inteiras, iam a enterrar no pequeno cemitério, e ele, o velho e honrado republi­cano, que a todos conhecia, pobre também como Job, chorando, não parava de lenta mas intermitentemente, tocar o sino, no seu último adeus de sentimento aos amigos que a peste atingia e a qual, se bem me lembro, chamávamos de «pneumónica».
Época triste e difícil de relembrar foi aquela do final da Grande Guerra de 1914-1918... Grande Guerra que aqueles que especulam com as vidas dos povos provocam para se encherem de dinheiro... dinheiro que, dizem eles, é preciso ganhar... nem que seja honrada­mente!
Naquele tempo havia em Alhos Vedros um Club, uma Sociedade Filarmónica, com a sua respectiva banda, e bem afamada que era aquela banda de música, e dois Clubes de Futebol.
No Club, que era frequentado pela chamada «elite» da vila, davam-se récitas, bailes e outras festividades e também ali, durante a semana, funcionava uma sala de aula, correspondente à quarta classe, além de mais duas escolas oficiais, sendo uma dirigida pelo professor Gusmão; a outra, pela professora Dona Maria Assis, que morava em Setúbal e a qual eu frequentava.
O grupo dramático do Club era composto por amadores e, entre eles, podem ser citados o senhor Paixão, os dois irmãos Gameiro, o Luís e o João, o José VaIverde, que era o cómico do grupo, mais dois ou três elementos, cujos nomes já o tempo apagou da minha memória. A «artista», que era pau para toda a obra era uma cançonetista de Lisboa, de nome Elvira Guedes que, à falta de me­lhor desempenhava qualquer papel e até com agrado para a pouca exigente plateia da vila... mas que trazia a mulher do José Valverde com a pulga na camisola, desconfiada com a «artista»... lá isso trazia. Eu era o ponto e, de vez em quando, também fazia umas rábulas em determinadas peças, cujos repertórios já sabíamos de cor e salteado.
Como era impossível, naqueles tempos, uma moça da terra fazer parte dum grupo dramático de amadores!!! A moça que pisasse um palco... seria logo apodada de desonesta e sobre ela recairiam todas as maledicências das gentes da vila... Em terras pequenas, onde todos se conhecem, ainda é assim... ninguém tem confiança em ninguém. Vontade não faltava, a certas raparigas da vila, gente boa, para colaborar... mas o que não se falaria depois... o que não se inventaria de aventuras praticadas atrás dos bastidores, e longamente badaladas lá .no rio dos Paus, onde, no princípio de cada semana, se juntava o mulherio da vila lavando a roupa suja...? Mas como as garotas não queriam ficar «faladas»... para garantirem o casamento, então, mesmo a contragosto, ficavam de fora. .. criticando a Enviar Guedes. E hoje, como tudo já é diferente!!! E ainda me lembro bem como aquelas récitas agradavam a todos os sócios do Clube, que ali convivíamos como uma família. .. mas que às vezes, por dá cá aque­la palha... todos brigavam.
Um dia, por determinado amuo sem importância, como eram todos aqueles amuos, o grupo dramático levantou arraiais do Clube e se passou, com artistas, cenários, reportório e tudo o mais, para a Sociedade, então denominada Sociedade Filarmónica Recreio e Entusiasmo de Alhos Vedros. A Sociedade, com maior número de sócios que o Club, tinha, para a terra, uma boa banda de música, onde se salientavam o cornetista Alfredo Estrela, operário caldei­reiro nos Caminhos de Ferro e também músico dos «Franceses», uma outra grande banda de música do Barreiro. Havia também um óptimo clarinete, de nome o Manuel da Velha, um outro, também tocador de clarinete, o Bonzão e que tinha mais folgo que um gato, um flautinista, o Abílio, de Santo António da Charneca... e outros mais cujos nomes a esponja do tempo já apagou da minha memó­ria... abalada e varrida por tantos vendavais...
À Diretoria da Sociedade eu vim a pertencer, além pelos anos de 1925-1926-1927, na companhia do Virgílio Pereira, pai, que era o presidente, do Filipe Nery de Sousa e mais outros companheiros. Foi na nossa gestão, creio que no ano 1926, que se levantou a ideia da construção da nova Sede Social da Sociedade... a qual, hoje, lá está em Alhos Vedros, para atestar aos despeitados e maldosos, que duvidam de tudo, quanto vale o trabalho colectivo de um grupo de homens, quando animados por um ideal de amor à colectividade, de confiança nos homens, sempre que despidos de interesses mesqui­nhos e personalistas.
E a Sociedade lá está. Agora, compete às novas gerações torná-­la cada vez maior e mais acolhedora, no sentido da verdadeira fraternidade que deve existir entre os humanos.

(Continua...)

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