Alegria e Esperança
Para a maior parte do povo português, após curtas dúvidas na manhã de 25 de Abril, os acontecimentos em decurso significavam principalmente uma grande esperança no que o futuro poderia vir a ser, pois se algum traço marcava a vida e atitude dos portugueses era uma evidente tristeza colectiva.
Para além do atraso, para além da falta de liberdade, para além do ambiente opressivo, e por causa de tudo isso, Portugal era um país cinzento, de gente cinzenta, um cinzentismo extensivo ao regime e ao seu líder que, longe das lideranças carismáticas de outras ditaduras passadas, apostava numa ausência de imagem, como se existisse num limbo que, por paradoxal que pareça, lhe permitia como que estar em todo o lado, sem que ninguém o soubesse ao certo.
Enquanto outros ditadores se mostravam às massas ululantes e o faziam repetidamente, Salazar reservava-se em excesso, cedendo apenas o indispensável às coreografias nacionalistas da praxe.
Salazar era como que uma figura ausente, mas sempre presente.
E Portugal vivia no nevoeiro e na obscuridade de um Inverno triste, a que uma anunciada Primavera marcelista nunca conseguiu dar cor.
Por isso mesmo, as semanas que se seguem ao 25 de Abril de 1974 caracterizam-se pela espontaneidade de uma alegria quase sem fim, bem como uma esperança que parecia tamanha de possibilidades.
Só que essas alegrias e espontaneidades, muito mal vistas no regime deposto, também seriam a breve prazo objecto de tentativas de enquadramento por parte daqueles que se queriam apossar do novo.
Uns, mais timoratos, quiseram desde cedo acalmar as gentes, mandá-las para casa, domá-las, apenas como uma arreata mais longa do que a anterior.
Outros, querendo usar essa alegria e esperança num outro sentido, usaram a estratégia inversa de exacerbar as paixões e fazê-las transbordar ao serviço dos seus objectivos.
Estarei eu a falar daquilo que então se designou, respectivamente, como reacção e revolução ?
Pois, certamente que sim.
E, salvo honrosas excepções, durante dois anos, as alegrias e esperanças de um povo foram cartas jogadas por um grupo restrito de jogadores, que só a custo e quantas vezes à força foram concordando com as regras desse mesmo jogo.
De tudo isso resultou pouco, muito pouco e as cores foram esmorecendo de novo até voltarmos a um novo e gradual cinzentismo, a um novo nevoeiro e de novo a um medo de existir que José Gil tão bem tem descrito e que, em boa verdade, nunca deixou de nos habitar.
Não temos censura, não temos polícia política, não temos mecanismos formais de repressão, mas temo-nos todos uns aos outros e coisa mais asfixiante, ao fim de algum tempo, não há, por muita alegre sardinhada no Verão que se faça, por muita fatiota catita e de boa marca que já se saiba comprar ou por muito que se acelere ao volante de um turbo vermelho.
Somos assim há séculos e todos os visitantes que por cá passaram concordam no diagnóstico.
Há muito que as nossas alegrias colectivas são exuberantes, mas curtas e espaçadas.
A bandeirinha na janela funcionou umas semanas, mas logo que houve ausência de motivo, saiu de lá, para não dar nas vistas.
Somos naturalmente cinzentos, tristonhos, globalmente dados ao compromisso, ao compadrio, ao amiguismo porreiraço.
Não gostamos de dar nas vistas e, pior do que isso, de "cair mal", de "ficar mal vistos".
E isso não é nada alegre.
E não dá grande esperança a ninguém.
AV1 (com cartoon de Siné publicado no jornal República de 11 de Maio de 1975)
Para a maior parte do povo português, após curtas dúvidas na manhã de 25 de Abril, os acontecimentos em decurso significavam principalmente uma grande esperança no que o futuro poderia vir a ser, pois se algum traço marcava a vida e atitude dos portugueses era uma evidente tristeza colectiva.
Para além do atraso, para além da falta de liberdade, para além do ambiente opressivo, e por causa de tudo isso, Portugal era um país cinzento, de gente cinzenta, um cinzentismo extensivo ao regime e ao seu líder que, longe das lideranças carismáticas de outras ditaduras passadas, apostava numa ausência de imagem, como se existisse num limbo que, por paradoxal que pareça, lhe permitia como que estar em todo o lado, sem que ninguém o soubesse ao certo.
Enquanto outros ditadores se mostravam às massas ululantes e o faziam repetidamente, Salazar reservava-se em excesso, cedendo apenas o indispensável às coreografias nacionalistas da praxe.
Salazar era como que uma figura ausente, mas sempre presente.
E Portugal vivia no nevoeiro e na obscuridade de um Inverno triste, a que uma anunciada Primavera marcelista nunca conseguiu dar cor.
Por isso mesmo, as semanas que se seguem ao 25 de Abril de 1974 caracterizam-se pela espontaneidade de uma alegria quase sem fim, bem como uma esperança que parecia tamanha de possibilidades.
Só que essas alegrias e espontaneidades, muito mal vistas no regime deposto, também seriam a breve prazo objecto de tentativas de enquadramento por parte daqueles que se queriam apossar do novo.
Uns, mais timoratos, quiseram desde cedo acalmar as gentes, mandá-las para casa, domá-las, apenas como uma arreata mais longa do que a anterior.
Outros, querendo usar essa alegria e esperança num outro sentido, usaram a estratégia inversa de exacerbar as paixões e fazê-las transbordar ao serviço dos seus objectivos.
Estarei eu a falar daquilo que então se designou, respectivamente, como reacção e revolução ?
Pois, certamente que sim.
E, salvo honrosas excepções, durante dois anos, as alegrias e esperanças de um povo foram cartas jogadas por um grupo restrito de jogadores, que só a custo e quantas vezes à força foram concordando com as regras desse mesmo jogo.
De tudo isso resultou pouco, muito pouco e as cores foram esmorecendo de novo até voltarmos a um novo e gradual cinzentismo, a um novo nevoeiro e de novo a um medo de existir que José Gil tão bem tem descrito e que, em boa verdade, nunca deixou de nos habitar.
Não temos censura, não temos polícia política, não temos mecanismos formais de repressão, mas temo-nos todos uns aos outros e coisa mais asfixiante, ao fim de algum tempo, não há, por muita alegre sardinhada no Verão que se faça, por muita fatiota catita e de boa marca que já se saiba comprar ou por muito que se acelere ao volante de um turbo vermelho.
Somos assim há séculos e todos os visitantes que por cá passaram concordam no diagnóstico.
Há muito que as nossas alegrias colectivas são exuberantes, mas curtas e espaçadas.
A bandeirinha na janela funcionou umas semanas, mas logo que houve ausência de motivo, saiu de lá, para não dar nas vistas.
Somos naturalmente cinzentos, tristonhos, globalmente dados ao compromisso, ao compadrio, ao amiguismo porreiraço.
Não gostamos de dar nas vistas e, pior do que isso, de "cair mal", de "ficar mal vistos".
E isso não é nada alegre.
E não dá grande esperança a ninguém.
AV1 (com cartoon de Siné publicado no jornal República de 11 de Maio de 1975)
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