domingo, abril 23, 2006

Rotação de terrenos e colheitas

Antigamente, muito antigamente, quando o único adubo era o belo estrume e a bela bosta, os agricultores viam-se e desejavam-se para que as terras mais fraquinhas rendessem alguma coisa e, em anos maus de muito calor ou muita chuva, se a colheita se fosse, era certa a fome.
Naquela altura era hábito praticar-se a forma mais básica de rotação de culturas num terreno. Cultivava-se metade e deixava-se o resto em pousio até ao ano seguinte, para depois rodar a utilização dos solos.
Até que um dia se percebeu que, dividindo em três parcelas o terreno, dava para cultivar uma cultura de Inverno, outra de Verão e deixava-se só um terço do terreno a recuperar do uso (até podia ser com tremoço ou fava, que azotavam as terras e serviam depois de alimento para os animais). Assim ocupavam-se 2/3 do terreno e até se podia prevenir um ano mau de muita chuva ou de muito calor, pois havia sempre a hipótese de uma das culturas escapar.
Mais tarde, é claro, que houve quem descobrisse que, dividindo a coisa em quatro parcelas, ainda era melhor e por aí adiante até que no século XVIII ou XIX houve uma alma que já ia numa rotação de onze parcelas e usos para o solo, com utilização de adubos e tudo o mais para aumentar a produção e a produtividade.
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Algo parecido se foi passando com os nossos autarcas e a forma como evoluiu a forma como foram encarando a utilização dos solos que estão à sua guarda.
Antigamente, muito antigamente, quando eu ainda usava calcões, era como se apenas houvesse mato e casario, incluindo-se no casario desde zonas habitacionais a "industriais". Alhos Vedros é um bom exemplo dessa confusão, em que toda a zona de casario foi crescendo numa misturada sem lógica. E o resto era mato que ficava à espera para servir quando fosse preciso.
Depois, as coisas mudaram, apareceram as ideias dos PDM's, e as zonas de casario deviam ser separadas das zonas ou "parques" industriais, assim como o mato passava a ser mais dignamente designado por "zonas verdes", mas no fundo eram tratadas à mesma como mato e era delas que saíam sempre as parcelas para o abarracqamento "industrial". Em Alhos Vedros esta fase mal se percebeu porque as fábricas continuaram no meio do casario e as zonas verdes continuaram a ser apenas mato e mais nada, salvo raras excepções.
Quando tudo isto se aperfeiçoou, começou a ser necessário delimitar melhor as coisas, havia as zonas residenciais, as de utilizações múltiplas, as destinadas a equipamentos colectivos, as zonas verdes "antrópicas" (os jardins e parques) e o resto do mato, com ou sem valor ecológico, conforme os cálculos.
O problema é que ao crescimento do número de utilizações, não correspondeu igual ou mesmo qualquer aumento do terreno disponível, pelo que tudo sempre foi crescendo à custa do "mato" que, como vimos, na agricultura tradicional, era uma espécie de zona de reserva para revitalizar as energias do conjunto.
Pela nossa zona, e não falo só do nosso concelho, aquilo que os "autarcas" sempre viram como "mato" dispensável e não gerador de riqueza imediata visível foi sendo sempre sacrificado às outras utilizações, tidas como geradoras de mais desenvolvimento e "progresso".
As manchas florestais da Península de Setúbal foram sendo paulatinamente dizimadas nos últimos 30 anos, depois de parte da sua zona ribeirinha ter sido brutalmente sacrificada à industrialização e à poluição causada pela Lisnave, Siderurgia e de há muito pela CUF, em especial pela Fisipe.
À destruição do azul, foi-se seguindo a destruição do verde, com todos a terem a sua quota-parte de responsabilidade. Do Pinhal de Negreiros, já só há uma vaga ideia, o Poinhal do Rei vai pelo mesmo caminho, a Aroeira agora é para quem pode e gosta de ir para o golfe, os vários Pinhais em redor do Seixal, de Alhos Vedros e da Moita foram caindo à vez, o montado na zona dos concelhos do Montijo (Pegões) e de Palmela (Marateca, Águas de Moura) foi resistindo a muito custo e não sem acidentes de percurso, com a conivência dos poderes locais e o alheamento dos centrais, menos quando há conflitos de cores nos negócios em vista.
Manchas florestais contínuas dignas desse nome no hinterland da Península, mas já muito "ratadas" por estas e aquelas razões, quase só restam a Mata da Machada e a Mata de Sesimbra (e e já me escuso de falar aqui no "nosso" Pinhal do Forno".
As notícias mais recentes de que estão sob cobiça para "acessibilidades" e "projectos de interesse turístico estratégico" já nos fazem perceber o seu destino.
O destino da Margem Sul é tornar-se uma espécie de Margem Norte de Lisboa, só que com um bocadinho mais de "modernidade" nas designações dos empreendimentos. A Arrábida fará as vezes de Serra de Sintra e as vezes de Cascais não há quem faça.
O arco ribeirinho vai torna-se um círculo ribeirinho de subúrbio contínuo, tudo em nome da "pressão" das "novas acessibilidades", que fico sem perceber se, afinal, são boas ou más.
E depois justifica-se tudo com estudos do tempo do troca o passo, ignorando que apenas se estão a acentuar desiquilíbrios e assimetrias demográficas, pois a população portuguesa está longe de ter um crescimento vagamente compatível com a criação de novos fogos na área que vai de Almada a Alcochete.
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Só que tudo isto é, nestes tempo das novas tecnologias, apresentado com recurso a muito powerpoint com imagens sacadas da net e marteladas a photoshop e, quando há mais dinheirinho e tempo, a simulações fabricadas em computador que nos permitem ver zonas verdejantes, crianças sorridentes e passarinhos chilreando onde na realidade já só há entulhos por limpar.
Os autarcas do presente que nos anunciam um "futuro esplendoroso", fazem-nos com malabarismos de retórica, a convicção do vendedor de banha da cobra e a certeza da quase absoluta impunidade, pois a maioria já está insensível ou convencida de que tudo isto é inevitável.
Já assisti, em diversos momentos e lugares, por diversas razões pessoais ou profissionais, a anúncios gongóricos de grandes obras e das respectivas maravilhosas contrapartidas para as populações.
As obras sempre se fizeram, com mais ou menos dificuldade em remover os obstáculos legais à sua concretização e muito empenho das próprias autarquias em criticar esses mesmos entraves, clamando pelo interesse público das ditas obras; mas raramente as contrapartidas chegaram a tempo e condições.
A enumeração de todos os exemplos à nossa volta seria fastidiosa.
As desculpas para os incumprimentos são sempre as mesmas: atrasos do poder Central, falta de verbas, atrasos da responsabilidade dos empreendedores privados, estudos prévios que não contaram com factores imprevistos e imprevisíveis.
Mas quantas vezes se accionaram as clásulas de salvaguarda contra os incumpridores ?
E quantas vezes as contrapartidas foram anunciadas pelo Poder Central ?
A ladaínha é sempre a amesma e há sempre pessoal técnico disposto a assinar de cruz o que o pessoal político lhe dá a (e para) comer.
Por isso, a certa altura é legítimo questionarmo-nos se, realmente, quem quer resistir a este estado de coisas não estará a remar contra uma corrente demasiado forte.
Se não serão meras formigas no caminho de um magote de elefantes em tropel imparável.
Talvez seja, mas o direito à resistência ainda existe formalmente, assim como o direito à liberdade de expressão, mesmo que seja das minorias.

Tadeu Abrenúncio (com fotos do Conservador e do Oliude)

2 comentários:

Ponto Verde disse...

Para lá caminhamos a passos largos infelizmente só me mete uma certa raiva que tudo isto seja feito por iniciativa ou cumplicidade de autarquias de maioria CDU que querem fazer crer exetamante o contrário.

Ponto Verde disse...

Gostava de linkar este excelente texto, mas não sei como...