sábado, julho 01, 2006

O Labrego

Escrevia-se num dicionário agora já centenário que “labrêgo” era sinónimo de rústico, de pessoa mal criada, no sentido, quero eu supor que de origem duvidosa e ao mesmo tempo de deficiente educação. Em outro novo, daqueles de referência, “labrego” é um homem do campo, vilão, ignorante, sem educação.

Com o correr dos tempos, com o gradual estertor da nossa ruralidade, com a urbanite a entrar nas veias de todo o país, em especial naqueles grupos sociais que se pretendem estar muito à moda, no seu tempo, ávidos de mostrar a sua (pós?) modernidade e o seu sucesso, social e/ou económico, seria de esperar que a “labreguice” (palavra que penso ter inventado ainda ontem para descrever a natural qualidade de ser labrego, mas que o dicionário desconfirma, afirmando já pré-existir) estive em extinção acelerada e fosse difícil de encontrar, tanto mais quanto nos aproximássemos desses aspirantes a beautiful people de trazer por casa.

Nada mais errado. O labrego e a sua cara-metade a labrega, estão vivos e de boa saúde na nossa sociedade. A labreguice resiste firmemente por baixo das demãos pior ou melhor dadas de polimento social à custa de ostentação endinheirada de origem recente e patines a muito custo aplicadas à força de muita griffe, de muita calcinha de marca, de muito pólo de etiqueta à mostra, de muito óculo de estilista estrábico, de muito carrinho alemão turbinado ou de muito monovolume ou jeeps com que depois se é incapaz de fazer uma inversão de marcha ou estacionar normalmente.

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Que se entenda: eu sou todo a favor da mobilidade social ascendente, do sucesso e recompensa do espírito empreendedor, até de algum chico-espertismo e pato-bravismo sincero e bem-intencionado.

Agora o que me dá as voltas ao âmago é ver como os labregos de ontem, envergonhados das suas raízes e da sua natureza, se disfarçam e adoptam costumes recolhidos em revistas de sociedade, copiando visuais de quem já os copia de outros, com as meninas e senhoras a decalcarem o que vêem nas bimbas esposas dos jogadores de futebol, enquanto os seus maridonços se tentam transformar em puros-sangues altaneiros, de sorriso afivelado, oscilando entre a careca disfarçada a navalha e a melena pigmentada de doirado, como se todos tivessem uma costela escandinava e o bronze tivesse nascido de semanas de surf no Hawai.

Mas, quando confrontados com situações de conflito, em que o seu egozinho se sente ameaçado, desatam em labregada valente e demonstram até que ponto o dinheiro pode comprar muito e até dar acesso a muita informação, mas não muda a essência das pessoas.

Quem já viu os Vigaristas de Bairro do Woody Allen e apreciou como a Tracey Ullman fracassa apesar de todos os esforços do Hugh Grant, perceberá sobre o que estou a escrever.

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Terei certamente complexos de classe por resolver, pensarão alguns!

Não, pelo contrário!

Nada tenho contra as verdadeiras aristocracias que, em boa verdade, quase não existem ou então degeneraram estrepitosamente devido a longas práticas endogâmicas.

Tenho muito contra, isso sim, aqueles que sendo da minha “classe” ou extracção social o tentam encobrir esforçadamente, labutando com a sua natural labreguice para que ela não irrompa subitamente de forma imprevista e inconveniente.

O que acaba sempre por acontecer, de uma forma ou de outra, deixando a nu aquilo que é mais triste, e que não é a natureza labrega, quanta vezes involuntária, mas sim a negação de tal condição pela via cosmética, como aquela senhora que se perfuma com Channel após uma semana sem passar pela banheira.

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Eu pelo menos, assumo-me como bom e velho labrúsco, que a etimologia me confirma ser alguém grosseiro e agreste, que eu me esforço apenas por polir o q,b. para um convívio social mínimo sem atritos irremediáveis.

Labrúsco nasci, labrúsco morrerei, sem a vergonha de tal, apenas com a consciência que devo moderar-me para conveniências de quem comigo convive, desde que não seja labrego complexado, com a alma escondida no armário e apenas a superficie artificial à vista de todos os mais distraídos.

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AV1

1 comentário:

Anónimo disse...

Já outros que nascem da dita classe nobre e orgulhosa, vá que sem aneis mas conservando todos os dedos, não se importam de alabregar que é para que os falsos grifées os entendam melhor.