sábado, julho 08, 2006

Questões de hábito

A notícia merece destaque de 1ª página no Expresso, embora tenha mais de um ano e aparentemente seja um fait-divers menor.
Ingvard Kamprad, fundador das lojas e IKEA e alegadamente o 4º homem mais rico do mundo (eu custa-me perceber estes rankings porque a partir de seis zeros tudo se me embrulha na ordem de grandeza dos milhões), veio o ano passado visitar a loja de Alfragide e viajou em classe económica, utilizou táxi para se deslocar, instalou-se na Pensão Alegria na Praça do mesmo nome e no regresso da visita à loja usou um autocarro da Carris.
Acresce a tudo isto que o homem tinha então 79 anos.
Ora um comportamento destes é algo inconcebível entre nós, mas em geral entre latinos e americanos.
Qualquer patareco tuga com uns cobres e um negócio de média dimensão gosta logo de exibir-se e dar nas vistas.
Alguém imagina o, algo espartano para os nossos hábitos, amigo Belmiro a andar de autocarro?
Dava logo 23 entrevistas e seriam feitos 9 perfis numa só semana sobre o homem e a sua experiência.
Alguém imagina um qualquer patego nacional, administrador de um banco de importância mínima no contexto europeu, a ir visitar uma depend~encia sem ser de "grande espada"?
Alguém entrevê a possibilidade de um qualquer milionário americano aparecer por cá, ainda por cima em negócios, sem se fazer anunciar com fanfarra e aceitando a genuflexão colectiva de qualquer governo e comenda presidencial, conforme o famoso Bill Gates, um qualquer Steve Jobs ou equivalente?
A diferença, queiramos ou não, está numa coisa intangível mas incontornável, que passa pela forma como especialmente os escandinavos encaram a sua ética de trabalho e não prezam a ostentação bacoca de muitos outros povos.
A Suécia encontrava-se numa situação de muito maior atraso do que Portugal no século XIX, era uma terra ultra-periférica e inóspita. Num século, deram um salto enorme nos seus índices de desenvolvimento, sem que isso se tenha devido a uma posição estratégica privilegiada ou a recursos naturais em profusão.
A diferença é que, há 100 anos, a sua população já estava alfabetizada quase a 100% e alfabetizada a sério, não para encher estatísticas.
E essa alfabetização só em parte esteve a cargo do Estado, tendo sido muito importante o papel das famílias e da organização eclesiástica luterana, que sempre privilegiou o contacto individual com os textos sagrados, sendo os seus sacerdotes meros orientadores dos crentes e não uma casta especial, fechada como no caso do catolicismo.
E isso permitiu um avanço enorme em termos de capacidade de adaptação e inovação, com poderosos efeitos na economia.
É verdade que isto cheira às teorias do velho Max Weber.
Mas a verdade é que Weber era um observador arguto da realidade social, não um teórico em busca de modelos ideais de sociedade, como o bom velho Marx.
E, no caso escandinavo, a explicação das vantagens da velha ética protestante, sóbria, frugal e não exibicionista, é muito mais válida que tantas outras para as razões que levam certos povos e culturas a funcionarem de um modo mais eficaz do que a concorrência.
Nós por cá, infelizmente, somos mais dados às fantasias imaginosas ou então à adaptação acrítica de modelos que não percebemos verdadeiramente.
É por isso que por cá nunca nascerá uma empresa como a IKEA ou a Nokia, ou a Volvo, ou a Saab ou mesmo um grupo como os ABBA, que se manteve sempre na Suécia a pagar os seus impostos na totalidade, em vez de os transferir para um paraíso fiscal.

AV1

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